este não é um ... manifesto de mÚsica contemporÂnea

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ReferênciasADORNO, T.W. Filosofia da Nova Música. Trad. Magda França. São Paulo: Perspectiva, 2002._____________. Prismas: crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge de Almeida. São Paulo: Ática, 1998.ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes, 2009.BRÉTON, André. Nadja. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cosac Naify, 2007.DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5). Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: 34, 1997.DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1966.ECO, Umberto. O problema geral da definição da arte. In: A definição da arte. Lisboa, 1981.JAMESON, Fredric. Pós-modernidade e sociedade de consumo. Trad. Vinícius Dantas. Novos Estudos nº 12, 1982.KOOLHAAS, Rem. Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2008.MOLES, Abraham. O Kitsch: a arte da felicidade. Trad. Sergio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 1975.TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. São Paulo: Vozes, 1976.WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido: Uma Outra História das Musicas. São Paulo: Schwarcz, 2004.

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… este não é um...

MANIFESTO DE MÚSICA CONTEMPORÂNEA1

“Kill yr idols” – Sonic Youth

Poderia haver algo mais evidente do que escrever um manifesto em pleno século XXI? A

segunda metade do século que passou foi marcada por uma crise geral da razão ocidental,

tendo como culminância as duas grandes guerras e todos os seus desdobramentos. O

grande sonho de progresso transformara-se em desilusão, e a ideia de que era possível

sublimar o passado para a instauração de uma nova ordem se mostrou – quem diria –

utópica. Assim, como aponta Giulio Carlo Argan em sua história da arte,2 a partir dos

anos 1960 o pensamento de diversas disciplinas se voltou para o passado, procurando

ressignificá-lo para, com isso, compreender seu presente. Esse processo de retomada

refletiu profundamente na filosofia e nas artes, que chegaram à conclusão de que a

convivência com o passado é não apenas necessária, mas iminente.

Alguns procedimentos estéticos que surgiram a partir desse contexto vieram a resultar em

fenômenos como o pastiche3 e o kitsch,4 que se constituem justamente pela apropriação

de objetos e eventos passados que, rearranjados e recontextualizados, assumem novos

significados. Esse é também, como diria Fredric Jameson, o procedimento adotado pela

escrita de Michel Foucault que, não sendo nem filosofia, nem história, nem teoria social

ou ciência política, “ao mesmo tempo, é todas e nenhuma dessas matérias”.5

Isso explica, de certa forma, a evidência apontada no início do texto: aqui, a proposta é

retomar um evento estético passado como motivação textual; no caso, o formato

manifesto. Entretanto, adotar esse formato, tal como fizeram os ícones das vanguardas

históricas, acarreta em assumir uma postura revolucionária que certamente não cabe nos

dias de hoje. Ou, pelo menos, não do mesmo modo como fizeram os vanguardistas no

início do século XX.

Quando Marinetti escreveu os manifestos Futuristas, aquele discurso anunciava a

1 Conta-se uma anedota a respeito da banda Fugazi (Washington DC): provenientes da cultura punk, os integrantes da banda

possuíam tremenda resistência à forma mercadoria da música. Por isso, se negavam a produzir e vender qualquer artigo com o nome da banda que não fossem os próprios CDs. Um fã, tomado pela vontade de poder usar uma camiseta com o nome de sua banda favorita, confeccionou a seguinte estampa: “This is not a FUGAZI t-shirt”. O Fugazi, diante de tamanha criatividade, cedeu e apoiou a reprodução de tal artigo.

2 ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 3 JAMESON, Fredric. Pós-modernidade e sociedade de consumo. Trad. Vinícius Dantas. Novos Estudos nº 12, 1982. 4 MOLES, Abraham. O Kitsch: a arte da felicidade. Trad. Sergio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 1975. 5 JAMESON, Fredric, op. cit., p. 17.

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instauração de uma nova ordem que procurava negar a tradição e o passado em nome da

era das máquinas e do progresso, chegando ao extremo de cantar a guerra como a “única

higiene do mundo”.6 Nos manifestos do Dadaísmo, a ruptura que se buscou foi na esfera

da própria linguagem artística, que é levada ao limite na busca de uma autonegação,

fazendo emergir seu caráter arbitrário e cultural de modo exacerbado (como na receita

“Para fazer um poema dadaísta”, de Tzara).7 Ou vemos ainda o Surrealismo, que buscava

romper completamente o limite entre arte e vida – o que era anunciado por Bréton em seu

manifesto e que posteriormente veio a se concretizar na figura de Nadja.8

Então, como resolver a contradição de escrever um manifesto em um período histórico que,

ao menos em tese, superou a utopia modernista? A resposta é a seguinte: não há solução.

A intenção aqui é, segundo o pensamento de Deleuze e Guattari, justamente conviver com

a contradição. É como nos mostra o conceito de “máquina de guerra”9 desenvolvido pelos

filósofos franceses que, sendo uma forma de resistência ao aparelho de Estado, não deixa

também de se manifestar através deste aparelho (mais à frente veremos como esse

conceito pode ser relacionado a manifestações estéticas contemporâneas). Por hora,

devemos apenas compreender que este manifesto não irá, como fizeram as vanguardas

históricas, propor a instauração de uma nova ordem. Aqui, queremos celebrar o caos. Em

compasso com as ideias de Deleuze e Guattari, queremos compreender os fenômenos

estéticos contemporâneos (no caso, da música) para além de oposições binárias como

“revolucionário X conservador” ou “novo X antigo”. Pelo contrário, estamos convictos de

que tais posturas se manifestam simultaneamente, em termos de “coexistência e

concorrência, num campo perpétuo de interação”.10

Além disso, iremos aproveitar o procedimento adotado pelo urbanista holandês Rem

Koolhaas que, em seu livro “Nova York Delirante”, escreve o que ele irá chamar de um

“manifesto retroativo”.11 O que isso quer dizer? Basicamente, enquanto os manifestos

vanguardistas propunham a destruição do passado seguida da edificação de uma nova

ordem, o manifesto retroativo não quer destruição: ele irá atribuir sentido àquilo que,

embora já exista, seja tido como caótico, carente de sentido. Para Koolhaas, esse objeto é

o aglomerado de prédios da ilha de Manhattan; para nós, o contexto aparentemente

6 MARINETTI, Felipo. Manifesto futurista. In: Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. TELES, Gilberto Mendonça. São

Paulo: Vozes, 1976. pg, 86 7 TZARA, Tristan. Para fazer um poema dadaísta. In: Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. TELES, Gilberto Mendonça.

São Paulo: Vozes, 1976, pg. 126. 8 BRÉTON, André. Nadja. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 9 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5). Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa.

São Paulo: 34, 1997. 10 Idem, p. 24. 11 KOOLHAAS, Rem. Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac

Naify, 2008.

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desconexo da música contemporânea.

O que se entende por contemporâneo?

O termo “contemporâneo”, em seu sentido mais usual e dicionarizado, diz respeito àquilo

que acontece ao mesmo tempo em que se fala. Deste modo, podemos entender como

contemporâneos todos os grupos musicais, artistas, filósofos, etc., que se encontram em

atividade neste período histórico particular, início do século XXI. Ao utilizar esse termo,

ideia não é, tal como acontece com os termos “moderno”, “clássico” ou “antigo”, cunhar

um novo conceito que carregue consigo características formais e ideológicas de um

período. Justamente, o termo “contemporâneo” nos parece adequado por carregar consigo

a ideia de efêmero, algo que está em eterna transformação, e que não necessariamente

precisa ser coeso e conexo.

Ao citar a noção de um período histórico particular, o que queremos sugerir é que há certos

procedimentos estéticos que só poderiam estar acontecendo atualmente. Embora se saiba

que, como Fredric Jameson aponta12, grande parte dos procedimentos artísticos ao longo

da história seja continuamente retomada e recontextualizada, observamos que o período

em que vivemos (pós 3ª revolução industrial) possui dispositivos particulares que sugerem

novas possibilidades, o que fica bem evidente no que diz respeito à produção de música. É

por esse motivo que, atualmente, um crítico de música não pode se limitar a analisar

apenas o resultado final de um álbum. Para uma análise consistente, deve-se levar em

consideração todo o processo de produção pelo qual passou aquele álbum.

Como característica desse início de século, o incessante avanço tecnológico parece ser um

fenômeno essencial para a trajetória da música contemporânea. Enquanto viabiliza

equipamentos e instrumentos musicais cada vez mais acessíveis, é também responsável

por facilitar enormemente a distribuição e divulgação da produção musical, tanto para

grandes gravadoras, quanto para músicos independentes. A popularização dos

computadores pessoais a partir dos anos 1990 aparece como uma fissura no sistema da

indústria fonográfica, posteriormente ainda mais impulsionado pelo aparecimento da

internet. A possibilidade da reprodução ilimitada de CDs, bem como o acesso livre a

produtos que antes eram exclusividade da indústria fonográfica, apontam para uma crise

dos direitos autorais. Softwares pioneiros no compartilhamento informal de dados, como

12 “Devo me limitar a sugerir que as rupturas radicais entre períodos não envolvem em geral mudanças completas de conteúdo, mas

sobretudo a reestruturação de um certo número de elementos anteriormente existentes: traços que, em período ou sistema anterior, eram secundários se tornam agora dominantes, e traços que eram dominantes se tornam, por sua vez, secundários”. JAMESON, Fredric. op. cit., p. 25.

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Napster e Audiogalaxy, causaram desespero e aflição aos representantes da indústria: a

prova disso foi o fechamento deliberado desses softwares, que aconteceu em 2001.

Porém, esses softwares iniciais apenas abriram caminho para novas versões e categorias

de compartilhamento de dados, o que hoje alcançou um patamar incontrolável, resultando

no fenômeno da pirataria. A pirataria é entendida aqui como a reprodução massiva de

artigos artísticos sem respeitar seus direitos autorais, com o intuito da obtenção particular

de lucro. Nesse sentido, na medida em que burla os sistemas da indústria fonográfica e

dos direitos autorais, a pirataria pode ser vista como o revés da assimilação fonográfica

pelo capitalismo. Muitas organizações e artistas tentam combater a pirataria, mas esta é

uma tarefa muito difícil em tempos que fornecem a qualquer um os aparatos necessários

para viver à parte da indústria fonográfica.

Deste modo, o que podemos afirmar é que, enquanto uns continuam preocupados em

compreender o que é e o que não é arte hoje (ou, no caso, música), nos limitaremos

apenas a dar exemplos – diante do amplo leque de idiossincrasias com o qual nos

deparamos – de manifestações estéticas que souberam se reinventar para se inserir na

situação contemporânea. Adotamos, assim, a concepção da arte como eterno devir,

proposta por Umberto Eco em seu texto “O problema geral da definição da arte”.13

Finalmente, é possível constatar que esse contexto cibernético acarretou em uma explosão

produtiva: o que antes estava quase inteiramente nas mãos da indústria fonográfica e dos

meios de comunicação, que manipulam e selecionam aquilo que será divulgado, está

agora ao alcance de quaisquer pessoas, dentro de suas casas, bastando que se tenha um

meio de acesso à rede. Esse panorama vai de encontro à teoria do descentramento de

Jacques Derrida que, através da constatação da crise do signo linguístico, aponta para a

possibilidade de uma produção que esteja à margem, deslocada de centro,14 como do

mesmo modo apontam Deleuze e Guattari ao constatarem o trabalho da “ciência nômade”,

espontânea e desmedida, em oposição à “ciência régia”, submetida ao aparelho de

Estado.15 Esses discursos podem ser lidos como uma proposta de desconstrução do

cânone; o descentramento como valorização da alteridade e como questionamento da

ciência régia. Justamente, é em compasso com esse pensamento que pretendemos

desenvolver este texto, o que significa que não se trata, aqui, da eleição de um cânone ou

da criação de ícones. Antes disso, enfatizamos que os grupos selecionados como

representantes dessas manifestações musicais contemporâneas são meros exemplos

13 “A arte se situa para além destas transformações históricas e morre continuamente para assumir novas formas.” ECO, Umberto.

O problema geral da definição da arte. In: A definição da arte. Lisboa, 1981, p. 126. 14 DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1966. 15 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix, op. cit.

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retirados da formação musical do autor; eles poderiam ser outros.

Nas análises a seguir, tentou-se elencar pelo menos um exemplo mundial e outro local, de

acordo com o procedimento Urbi et Orbi .

Radiohead e a Máquina de Guerra (Orbi)

Outubro de 2007 foi o mês em que, diferente do que normalmente se diria, o álbum In

Rainbows do grupo inglês Radiohead propositalmente “vazou” na rede. Essa foi a opção

de lançamento que a banda, juntamente com seus produtores, julgou ser a mais adequada

para a ocasião.16 A ideia foi a seguinte: o download do álbum completo foi

disponibilizado em um site oficial que continha uma “checkbox” na qual o usuário

deveria definir o valor que gostaria de pagar por tal álbum, podendo variar entre R$ 0,00 e

R$ ?,??. Essa atitude foi tomada de modo absolutamente independente de grandes

gravadoras (no caso, a EMI, à qual o grupo já foi submetido), e o lançamento foi marcado

por uma transmissão online e em tempo real do grupo em seu estúdio particular

executando todas as faixas do disco. É oportuno dizer que, deste modo, nem mesmo a

MTV foi obrigada a pagar direitos autorais aos artistas pela reprodução do “webcasting”,

uma vez que a transmissão estava disponível para todos na rede. O resultado disso, ao

contrário do que muitos poderiam imaginar, foi espantoso: em um ano o álbum havia

vendido mais de 3 milhões de cópias, tanto em formato digital quanto físico, e seus shows

de turnê eram esperados como nunca. Em 2009, na passagem pelo Brasil, o show reuniu

mais de 30 mil espectadores na Chácara do Jóquei, em São Paulo.

Sem dúvida, esse procedimento está extremamente carregado de sentido. Podemos agora

retomar o conceito de “máquina de guerra”, proposto por Deleuze e Guattari, para tentar

compreender como essa atitude dos músicos se insere em uma estética contemporânea.

Primeiramente, tal como propõem os filósofos no quinto volume dos “Mil Platôs”,

devemos opôr os conceitos de “máquina de guerra” e “aparelho de Estado”. Enquanto o

aparelho de Estado é responsável por impôr as práticas que irão conduzir o pensamento de

determinada sociedade (no caso, podemos entender a indústria fonográfica como um dos

organismos do aparelho de Estado), a máquina de guerra “faz valer um furor contra a

medida, uma celeridade contra a gravidade, um segredo contra o público, uma potência

16 “That was [manager Chris Hufford's] idea. We all thought he was barmy. As we were putting up the site, we were still saying,

‘Are you sure about this?’ But it was really good. It released us from something. It wasn't nihilistic, implying that the music's not worth anything at all. It was the total opposite. And people took it as it was meant.” Thom Yorke em entrevista.

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contra a soberania, uma máquina contra o aparelho”.17 O que se lê nesta breve citação é

justamente a potência que está representada pela máquina de guerra. O Estado, enquanto

entidade, necessita de reconhecimento público, uma vez que as relações hierárquicas são

ali estabelecidas judicialmente. Deste modo, decisões não podem ser tomadas sem antes

passarem pelo aval dos governantes mais elevados, que por sua vez estão submetidos aos

valores do Estado. Em contrapartida, a máquina de guerra funciona de modo velado, com

relações que se estabelecem por meio do que Deleuze e Guattari denominam o “espírito

de corpo”.18 Esse espírito de corpo tem a ver com um acordo secreto que há entre os

órgãos daquele corpo, e que justamente por ser secreto se opõe à lógica do Estado, pois

está sempre diante de uma potência de traição, de abandono. É exatamente aí que há lugar

para o pensamento desmedido, desregrado e intuitivo (em oposição ao medido, ao regrado

e ao imposto), pois passa-se a trabalhar em prol dos desejos comuns ao grupo, e não das

imposições do Estado. Entretanto, é importante ressaltar que, como havíamos anunciado

no início do texto, não se tratam aqui de pólos ou extremos; a existência da máquina de

guerra pressupõe a existência do aparelho de Estado, e vice-versa, o que faz com que

esses dispositivos não sejam opostos, mas sim concomitantes, complementares.

No Radiohead, fica evidente essa coexistência, pois tal atitude só foi passível de êxito após

a passagem do grupo por todo o ambiente dos negócios.19 Quanto à origem de tal

procedimento, fica claro que surgiu de um descontentamento, por parte dos artistas, em

relação ao contexto atual da comercialização da música.20 Isso os levou a buscar um novo

rumo, colocando em suspensão questões como as de direitos autorais e do valor da

música, que muitas vezes é determinado pelas gravadoras e pela crítica mais do que pelos

próprios ouvintes.

No sentido que estávamos propondo, é possível constatar, de início, a presença desse

espírito de grupo: na medida em que esse procedimento foi altamente experimental e

incerto, os integrantes do Radiohead concordaram em assumir os riscos, havendo sempre

a possibilidade de que qualquer um deles discordasse e colocasse o projeto abaixo

(hierarquia velada; potência de traição, que não ocorre no circuito da indústria

fonográfica, pois as gravadoras trabalham protegidas sob a assinatura de contratos). Além

disso, é interessante pensar que não foi a intenção do grupo criar um modelo a ser

17 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix, op. cit., p. 13. (Grifo do Autor) 18 Idem, p. 32. 19 “The only reason we could even get away with this, the only reason anyone even gives a shit, is the fact that we've gone through

the whole mill of the business in the first place”. Thom Yorke em entrevista. 20 “You're valuing the company or the interest of the artists rather than the music itself.” Idem.

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o de Estado?

seguido.21 O experimento foi uma resposta a uma situação específica, e tal como a

máquina de guerra, foi uma atitude desmedida e incerta que não aponta para um ponto de

chegada. Platôs, nomadismo... O grupo parece ter consciência da contradição na qual se

insere, pois embora esteja liberto do espaço metrificado da indústria fonográfica, ainda faz

shows e megaproduções que trazem consigo acarretamentos previstos pelo aparelho,

exigidos pelo capitalismo.22 Deste modo, podemos afirmar que tal fenômeno, constituído

de contradições e incoerências, por estar presente num contexto de disputa entre indústria

fonográfica e produção independente, coloca à prova a soberania do aparelho de Estado e

faz emergir, assim, uma vigorosa faceta da máquina de guerra deleuzeana.

(Urbi)

A banda Lugar Nenhum adotou a seguinte saída: construiu com as próprias mãos um

estúdio em um porão, gravou todas as suas faixas em um gravador analógico artesanal,

lançou essas músicas somente via rede e confeccionou um encarte/zine para distribuição.

A ideia é a de que se as músicas estão disponíveis, você pode gravar o seu próprio CD.

Além disso, no myspace da banda lê-se: “Março de 2010, terminamos de gravar 6 músicas

em casa de forma bricoleur/DIY, utilizando um gravador ADAT XT de 8 pistas”.23 Ao

evocar a figura do bricoleur24 e o espírito “do-it-yourself”,25 não estaria este

procedimento sendo uma fagulha de resistência ao aparelh

The Flaming Lips e o Corpo (Orbi)

“I am at my friend Chris's house. It's his thirty-fourth birthday. He had called me earlier in

the week. 'Hey, man, I'm having some people over Friday night for my birthday. We're

21 “It's not supposed to be a model for anything else. It was simply a response to a situation. We're out of contract. We have our own

studio. We have this new server. What the hell else would we do? This was the obvious thing. But it only works for us because of where we are.” Ibidem.

22 “We always go into a tour saying, 'This time, we're not going to spend the money. This time we're going to do it stripped down.' And then it's, 'Oh, but we do need this keyboard. And these lights.' But at the moment we make money principally from touring. Which is hard for me to reconcile because I don't like all the energy consumption, the travel. It's an ecological disaster, traveling, touring.” Idem, ibidem.

23 Disponível em: http://www.myspace.com/lugarnenhum 24 “O bricoleur, diz Lévi-Strauss, é aquele que utiliza 'os meios à mão', isto é, os instrumentos que encontra à sua disposição em

torno de si, que já estão ali, que não foram especialmente concebidos para a operação na qual vão servir e à qual procuramos, por tentativas várias, adaptá-los, não hesitando em trocá-los cada vez que isso parece necessário, em experimentar vários ao mesmo tempo, mesmo se a sua origem e a sua forma são heterogêneas, etc”. DERRIDA, Jacques, op. cit., p. 239.

25 “Do-it-yourself” é uma expressão que se popularizou durante o movimento punk, principalmente durante os anos 1970 e 1980. A expressão pode ser lida como uma das máximas de tal pensamento que, de tendência anarquista, buscava negar a sociedade capitalista e de consumo com a proposta da autogestão.

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going to listen to Zaireeka'".26

Zaireeka (1997) é o oitavo álbum de estúdio da banda estado-unidense The Flaming Lips. A

grande novidade deste álbum é que ele consiste em quatro CDs que devem ser tocados

simultaneamente, de modo sincronizado. Esta ideia, aparentemente maluca,27 foi

resultado de uma série de experimentos que a banda realizou em 1996, sendo um deles o

mais representativo: Wayne Coine, vocalista da banda, reuniu mais de 100 carros em um

estacionamento e distribuiu para cada motorista uma fita cassete contendo uma gravação

diferente para que todas fossem tocadas simultaneamente, ao sinal dele. Tudo isso foi

gravado e usado como base para a concepção do Zaireeka.

Esses procedimentos podem ser lidos como a dissolução dos limites entre artista e público,

já que este último passa então a ser não mais um espectador, mas sim um constituinte

essencial da atividade artística. A arte deixa de ser contemplativa para se tornar relacional,

como diria Nicolas Bourriaud em seu livro “Estética Relacional”.28 Na fala da nota 26,

percebe-se que a necessidade de possuir quatro toca CDs, ou de pelo menos quatro

pessoas para dar o “play” simultaneamente, propõe não apenas uma mera e comum

apreciação de música, mas sim todo um ambiente que quer estimular a relação entre as

pessoas por meio da arte.

A estética relacional está em compasso com a retomada do corpo enquanto materialidade

que acomete a arte a partir dos anos 1960. Durante a modernidade, a arte estava tão

preocupada consigo mesma que aboliu o corpo de suas produções, o que fica muito

evidente, por exemplo, nos objetos arquitetônicos representantes dessa época que, por sua

frieza e dessubjetivação, se mostraram praticamente inabitáveis. Diz Bourriaud: “[na

modernidade], a arte devia preparar ou anunciar um mundo futuro: hoje ela apresenta

modelos de universos possíveis”.29 Universos possíveis que propõem novas possibilidades

de relações. Essa é a ideia por trás da estética de Bourriaud que, ao se apropriar de um

termo cunhado por Karl Marx, entende a arte contemporânea como um “interstício

social”.30

26 Disponível em: http://www.prefixmag.com/reviews/the-flaming-lips/zaireeka/13221/ 27 O produtor da Warner Bros. relata seu diálogo com Wayne Coine: “Wayne came to me and said: 'Why don't we do it with ten

cds?', thinking that was a reasonable idea. And i had to be like 'why don't we do it with two?'. Then we settled it to four”. BEESLEY, Bradley. The Fearless Freaks. Waner Bros.: EUA, 2005.

28 “A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado) atesta uma inversão radical dos objetivos estéticos, culturais e políticos postulados pela arte moderna. […] Em outros termos, já não se pode considerar a obra contemporânea como um espaço a ser percorrido (a 'volta pela casa' do proprietário é semelhante à do colecionador). Agora ela se apresenta como uma duração a ser experimentada, como uma abertura para discussão ilimitada”. BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 19-21.

29 Ibidem, p. 17-18. 30 “O termo interstício foi usado por Karl Marx para designar comunidades de troca que escapavam ao quadro da economia

capitalista, pois não obedeciam à lei do lucro: escambo, vendas com prejuízo, produções autárquicas, etc. O interstício é um

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Sem dúvida, a proposta de tocar quatro CDs em sincronia constrói um novo universo, pelo

menos no que diz respeito à experienciação musical. Em Junho de 2010, o blog 29-95,

especializado em críticas e resenhas de música, promoveu um evento para audição

coletiva do álbum. O anúncio era o seguinte: “29-95 presents a Zaireeka listening party.

Wednesday, June 2. Continental Club patio. Doors open at 6 p.m., music starts at 7 p.m.

Free”.31 Considerando que o convite é para uma festa, e tendo em vista que festas são por

definição um espaço para relações humanas (ao contrário de um recital ou de uma

exposição), estamos convencidos de que a concepção do Zaireeka consegue ultrapassar a

lógica dos fones de ouvido, que quer o isolamento, para transformar a audição de um

álbum em evento social.

(Urbi)

Quem for a um show da banda Os Legais esperando uma apresentação musical comum

poderá se surpreender. O grupo, desde 1996, ficou muito conhecido por sua desconstrução

musical extrema, bem como por suas performances extravagantes, nas quais os integrantes

se embrulham em papel (geralmente, jornal ou revistas pornô) e se esfregam em lixo

(principalmente isopor) diante do público.

As músicas, improvisadas com instrumentos desafinados e letras bizarras, comprovam que

“a patética ditadura das sete notas não os fará parar”; os shows, marcados pela provocação

e participação do público, faz d'Os Legais exatamente o que eles pretendem ser: a

“orchestra de destruição interativa”.32 Essa ideia de interação não concorda precisamente

com o crítico francês quando ele afirma que “a arte é um estado de encontro fortuito”?33

Sonic Youth e o Ruído (Orbi)

Existe um modo de compreender a história do pensamento estético por meio da oposição

entre ordem e caos.34 Enquanto a ordem está pautada em valores como simetria,

harmonia, forma e a busca por uma cultura universal, o caos se caracteriza por aspectos

espaço de relações humanas que, mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no sistema global, sugere outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema”. Idem, ibidem, p. 22.

31 Disponível em: http://www.29-95.com/music/story/wayne-coyne-subject-zaireeka 32 www.myspace.com/oslegais 33 BOURRIAUD, Nicolas, op. cit., p. 25. 34 Essa teoria foi retirada de aulas de Estética do Prof. Dr. Cesar Floriano dos Santos no primeiro semestre de 2010. Ela foi

elaborada pelo próprio Professor, que ainda não teve chance de formalizá-la para publicação.

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subjetivos, trabalhando com disformidade, organicidade e dissonância, dando brecha para

a entrada do particular. Esses dois padrões estéticos, um que busca controlar e outro que

permite a desconexão, oscilam através dos tempos e podem ser reconhecidos como

predominantes, hora um, hora outro, desde a antiguidade até hoje. Rapidamente, vemos

que a cultura grega (III a.C.), com sua pretensão de se impor como império através da

razão e de, assim, construir uma hegemonia, tende para a ordem; em seguida, o período

gótico (IX~XIII) se caracteriza pela ruptura dessa hegemonia e pela valorização da

subjetividade, com brecha para a consolidação de culturas como a dos mouros e a dos

vikings, o que faz com que esse período tenda para o caos; já o período renascentista

(XIV~XV), sustentado pela ideia de civilização (universal) e pelo pensamento cartesiano

(racionalismo), tende novamente para a ordem; alguns séculos adiante (XVIII~XIX), o

romantismo e figuras como as de Nietzsche e Schopenhauer aparecem como valorização

da subjetividade e crítica da razão, tendendo para o caos; finalmente, chegamos ao

período capitalista moderno (XX) que, pautado profundamente na razão e na busca por

universais, tende claramente para a ordem.35 Deste modo, a pergunta que devemos fazer é

a seguinte: neste início de século XXI, seguimos a cronologia histórica e caminhamos

novamente para o caos, nos desvencilhando da ordem moderna, ou estamos diante de uma

terceira perspectiva que tenta dialogar com essas duas tendências aparentemente

conflitantes?

Na música, como aponta o crítico José Miguel Wisnik, a oposição entre ordem e caos se

caracteriza pela eterna disputa entre som e ruído. O ruído, como forma de continuum e de

entidade natural, sofre violência pela música tonal que, através de recortes, convenciona

intervalos e articula o ruído para convertê-lo em som.36 Esse modelo, que foi vigente

durante toda a tradição ocidental, está representado na pureza do som que predominou

entre a burguesia dos séculos XVII, XVIII e XIX. A partir daí, ocorrem tentativas de

ruptura com essa tradição, quando há uma volta massificada do ruído para a música do

século XX.

Essa retomada do ruído aparece inicialmente no atonalismo, tendência erudita moderna que

justamente buscava romper com a hierarquia de escalas imposta pela música tonal por

meio da desconstrução dos campos harmônicos, o que resultava em dissonâncias que

35 Existem ainda os períodos de transição, como foram o românico, o medieval, o barroco e a art nouveau, e que são justamente de

transição porque resistem a tais estereotipias. Esses momentos se caracterizam pela disputa entre estéticas antitéticas e complementares.

36 “Assim como o sacrifício de uma vítima (o bode expiatório, que os gregos chamavam pharmakós) quer canalizar a violência destruidora, ritualizada, para sua superação simbólica, o som é o bode expiatório que a música sacrifica, convertendo ruído mortífero em pulso ordenado e harmônico”. WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido: Uma Outra História das Musicas. São Paulo: Schwarcz, 2004. p. 34.

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chegavam ao limite do que se entendia por música até então. Para Adorno, este era

justamente o paradoxo que residia na convicção da vanguarda como única resistência à

indústria cultural:37 enquanto forma estética, a negação da tradição tonal era o único meio

de resistir à reificação capitalista; entretanto, a adoção dessa estética resultou em uma

música tão hermética e caótica que fez dela inacessível aos não iniciados, que são

justamente os que deveriam se libertar dessa reificação causada pela indústria cultural.

Podemos notar que, em um período ainda marcado pelo pensamento modernista, a retomada

do ruído aparece como forma de ruptura e, portanto, potência de revolução. É diferente do

que ocorre a partir dos anos 1960, quando se dissipa o caráter revolucionário e o ruído

aparece como conexão entre o sentir e o pensar, entre a razão e a emoção, o que fica

evidente na figura de Jimi Hendrix e sua guitarra como extensão do corpo.

Atualmente, um dos grandes representantes da adoção do ruído como som é a banda estado-

unidense Sonic Youth. Com uma longa carreira e vasta discografia, o Sonic Youth sempre

se caracterizou por seu experimentalismo extremo, abusando de pedais de distorção e

super amplificadores em seus máximos volumes, inventando as mais bizarras afinações e

modificando instrumentos na busca de sonoridades inusitadas e inéditas. O resultado

dessa carreira oscila entre belas harmonias melódicas, compostas por texturas de guitarras

sobrepostas, e conflitos ruidosos tão caóticos que podem se tornar inaudíveis.

O álbum mais recente da banda, The Eternal (2009), aparece como uma síntese dessa

trajetória. Se na fase dos anos 1980 a banda tendia explicitamente para o caos (ruído), já

nos anos 1990 tendia, em várias passagens, para a ordem (som). Assim, após quase 30

anos de existência, o Sonic Youth do século XXI surge como uma conexão entre a

primeira fase e a segunda,38 entre o som e o ruído, tornando difícil precisar a

predominância de um ou de outro.

Para responder à pergunta colocada acerca do rumo que toma o pensamento estético do

nosso tempo, pode-se dizer que a existência de um grupo como o Sonic Youth, que

consegue constituir uma carreira tão ambígua no que diz respeito à oposição entre som e

ruído, caos e ordem, aparece como prova de uma inusitada perspectiva – não mais de

disputas e oposições, mas de coexistências.

(Urbi)

37 ADORNO, T.W. Filosofia da Nova Música. Trad. Magda França. São Paulo: Perspectiva, 2002. 38 “Their new record taps into the rough-and-ready energy of a trio of late-80s releases - Evol, Sister and Daydream Nation - on

which more conventional song structures coalesced out of powerful dissonance to vertigo-inducing effect. It doesn't feel nostalgic, but it is a thrilling primer in everything that made the band exciting in the first place. No wonder, then, that they have called it The Eternal”. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/music/2009/jun/05/sonic-youth-rock-music

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Há um duo sonoro chamado Koll Witz que tem praticado experimentos livres de qualquer

prescrição. Instrumentos modificados e improvisados, como rodas de bicicleta, violinos

distorcidos, taças, molas, entre inúmeros objetos, servem de estímulo para composições

espontâneas e efêmeras, que querem ser a “música das coisas”.39 Aqui, o som parece

querer retornar à sua forma natural de ruído, constituindo a música de tudo aquilo que há

de menos previsível e convencionado.

The Mars Volta e a Tradição (Orbi)

A banda estado-unidense The Mars Volta, a despeito de sua tendência experimental, tem

forte herança da tradição cultural latina. Em meio a complexos arranjos de guitarra,

bateria, teclado e contra-baixo, pode-se ouvir o som de chocalhos e levadas que remetem

a ritmos como a salsa e o mambo, bem como letras cantadas em espanhol. Em uma

entrevista, o guitarrista Omar Rodríguez-López revela que algumas composições são

estruturadas a partir de claves características da tradição latina, amplificadas e aceleradas.

Como exemplo, ele cita a música “L'via L'Viaquez”, segunda faixa do álbum Frances the

Mute (2005), cuja melodia pode ser ouvida “in any old school cuban or puerto rican

record”.40

Do mesmo modo, o grupo Gotan Project, formado na França, se caracteriza pela

incorporação da música tradicional argentina à sua produção contemporânea, mesclando o

ritmo popular do tango com música eletrônica.41 Utilizando colagens, samples e

referências como o compositor Ástor Piazzolla, o grupo ficou conhecido mundialmente

graças à criativa e refinada releitura de um estilo musical histórico, que por sua vez

ressurge constituído de nova roupagem.

Está em jogo nesses procedimentos aquilo que Fredric Jameson identificaria como “o

mimetismo de outros estilos, particularmente dos maneirismos e tiques estilísticos de

outros estilos”,42 e que irá resultar nos fenômenos da paródia e do pastiche. Entretanto, na

teoria do crítico há uma oposição entre essas duas categorias, sendo a segunda uma versão

neutra na primeira, desprovida seu caráter satírico; enquanto Jameson vê na paródia

moderna um potencial crítico, ele vê no pastiche um procedimento vazio, já que sua

39 http://www.myspace.com/kollw 40 WEISS, Neal. Nissan Live Sets: The Mars Volta. Fox Studios: EUA, 2008. 41 “Gotan Project were the first to successfully bring the traditional and the folkloric into the electronic space. The million selling

‘La revancha del tango’ was followed by their second album the more jazz influenced ‘Lunático’ and Gotan Project toured the world with their new 'world music'”. Disponível em: http://www.gotanproject.com/node/36

42 JAMESON, Fredric, op. cit., p. 18.

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retomada estilística é somente uma máscara estética.

Esse pensamento nos leva a questionar o valor dos procedimentos adotados pelos grupos

citados acima na sua relação com a tradição, pois se podemos ter certeza de que suas

composições não resultam em paródias, já que não há presença da ironia ou do cômico,

somos obrigados a reconhecê-los como pastiches. Entretanto, o que acontece é que nessas

composições as máscaras estéticas não estão absolutamente intactas, pois já se encontram

contagiadas por tendências contemporâneas e são obrigadas a dividir espaço com o

experimentalismo, o que faz com que sua natureza original esteja distorcida. Isso sem

dúvida faz emergir uma potência naquilo que antes era tido como neutro, pois o pastiche

aqui não aparece como fenômeno isolado. Em meio ao experimentalismo, a retomada

estilística aparece como celebração de um passado e possibilidade de coexistência entre

tradição e ruptura.

(Urbi)

Denominada Quartchêto, a banda do Rio Grande do Sul deve muito de suas composições à

tradição gaúcha. Apesar da formação peculiar (violão, trombone, acordeon e percussão), a

proposta da banda é fazer uma releitura de ritmos como a vaneira e a milonga, isso sem

abrir mão de explorar as possibilidades que a reunião desses ritmos tradicionais com uma

formação não convencional proporcionam. Mais uma vez, vemos a referência à tradição

não como estagnação ou apenas resistência, mas como ponto de partida produtivo para o

processo criativo.

Comentários

A proposta de conceber um manifesto de música contemporânea é, sem dúvida, muito

abrangente e, portanto, desafiadora. Porém, como colocado no início do texto, esses são

apenas exemplos que fazem emergir procedimentos que, direta ou indiretamente, refletem

o modo de pensar de um tempo e anunciam possibilidades futuras. Justamente, a ênfase

aqui é na possibilidade muito mais do que na prescrição, no “dever-ser”, que era a

característica dos manifestos históricos.

Além disso, acreditamos que a discussão acerca do que se entende por contemporâneo vem

justamente concretizar a ideia deste manifesto que, não pretendendo ser portador de uma

verdade, quer evidenciar o efêmero para que não se torne dogmático. Isto é, em

concordância com a noção de efêmero pressupõe o eterno devir, assumimos que este texto

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deverá ser periodicamente reescrito para que possa trazer à tona novos procedimentos do

campo da música. Deste modo, o problema da abrangência fica resolvido, pois trata-se

aqui de um eterno esboço para um manifesto de música contemporânea.

Leonardo Cezari de Aquino

Junho/2010

Referências

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Fontes, 2009. BRÉTON, André. Nadja. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cosac Naify, 2007. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5).

Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: 34, 1997. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva.

São Paulo: Perspectiva, 1966. ECO, Umberto. O problema geral da definição da arte. In: A definição da arte. Lisboa,

1981. JAMESON, Fredric. Pós-modernidade e sociedade de consumo. Trad. Vinícius Dantas.

Novos Estudos nº 12, 1982. KOOLHAAS, Rem. Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan. Trad.

Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2008. MOLES, Abraham. O Kitsch: a arte da felicidade. Trad. Sergio Miceli. São Paulo:

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Vozes, 1976. WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido: Uma Outra História das Musicas. São Paulo:

Schwarcz, 2004. Vídeo BEESLEY, Bradley. The Fearless Freaks. Waner Bros.: EUA, 2005. MARKEY, David. 1991: The year punk broke. Produção independente: EUA, 1992. WEISS, Neal. Nissan Live Sets: The Mars Volta. Fox Studios: EUA, 2008. Web Matéria sobre Radiohead e o In Rainbows, disponível em:

http://www.nytimes.com/2007/12/09/arts/music/09pare.html Entrevista com Thom Yorke, disponível em:

http://www.wired.com/entertainment/music/magazine/16-01/ff_yorke?currentPage=all

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Matéria sobre The Flaming Lips e o Zaireeka, disponível em: http://www.prefixmag.com/reviews/the-flaming-lips/zaireeka/13221/

Entrevista com Wayne Coine, disponível em: http://www.29-95.com/music/story/wayne-coyne-subject-zaireeka

Matéria sobre Sonic Youth, disponível em: http://www.guardian.co.uk/music/2009/jun/05/sonic-youth-rock-music

Myspace www.myspace.com/kollw www.myspace.com/lugarnenhum www.myspace.com/oslegais www.myspace.com/quartcheto