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    Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 22(11):2449-2463, nov, 2006

    ARTIGO ARTICLE

    Itinerrios teraputicos em situaes

    de pobreza: diversidade e pluralidade

    Therapeutical itineraries in povertysituations: diversity and plurality

    1 Escola de Enfermagem,

    Universidade Federal

    do Rio Grande do Sul,

    Porto Alegre, Brasil.

    Correspondncia

    T. E. Gerhardt

    Departamento de Assistncia

    e Orientao Profissional,

    Escola de Enfermagem,

    Universidade Federal

    do Rio Grande do Sul.

    Rua So Manuel 963,

    Porto Alegre, RS

    90620-110, Brasil.

    [email protected]

    Tatiana Engel Gerhardt1

    Abstract

    The low-income populations practices and strate-

    gies for coping with daily problems, especially

    in relation to the search for health care, are an-

    alyzed by means of therapeutic itineraries. To

    unveil this populations coping strategies in re-

    lation to their health-disease process means

    identifying the individual and collective strate-

    gies and the meaning of these social dynamics

    related directly or indirectly to health. The search

    for treatment is described and analyzed here in

    relation to socio-cultural practices in terms of

    the paths chosen by individuals in the attempt

    to solve their health problems. The study thus

    indicates an interdisciplinary and multi-method-

    ological and conceptual approach relating con-

    cepts of practices, strategies, and health and lifesituations. The point of departure is that ways

    of coping with health problems require an un-

    derstanding of the strategies developed in a

    process of (re)appropriation and (re)construc-

    tion of knowledge. It is equally important to

    identify social support networks and individual

    capacity to mobilize such resources. The recog-

    nition of these practices allows (re)directing ac-

    tions in collective health.

    Delivery of Health Care; Socioeconomic Factors;

    Problem Solving

    Introduo

    As prticas e estratgias da populao de baixarenda no enfrentamento de seus problemas co-tidianos, sobretudo em relao procura de cui-dados em sade, so aqui analisadas atravs dositinerrios teraputicos. A relao entre itiner-rios teraputicos e pobreza bastante relevanteno campo da Sade Coletiva, em especial nocontexto brasileiro, marcado pela desigualdadesocial e diversidade cultural que se reflete nabusca do cuidado. O termo itinerrio teraputi-co aqui utilizado como sinnimo de busca decuidados teraputicos e procura descrever eanalisar as prticas individuais e scio-culturaisde sade em termos dos caminhos percorridospor indivduos pertencentes a camadas de baixa

    renda, na tentativa de solucionarem seus pro-blemas de sade. A partir do surgimento de umou mais sintomas fsicos ou psquicos e de seureconhecimento como tal, o indivduo se en-contra frente a uma rede complexa de escolhaspossveis 1. Os processos de escolha, avaliao eaderncia a determinadas formas de tratamen-to so complexos e difceis de serem apreendi-dos se no for levado em conta o contexto den-tro do qual o indivduo est inserido, sobretudofrente diversidade de possibilidades dispon-veis (ou no) em termos de cuidados em sadepara as populaes de baixa renda.

    Para se compreender a sade dos indivduose a forma como eles enfrentam a doena torna-

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    se necessrio analisar suas prticas (itinerriosteraputicos), a partir do contexto onde elastomam forma, pois cada contexto possui ca-ractersticas prprias e especificidades nessecontexto que acontecem os eventos cotidianos(econmicos, sociais e culturais) que organi-zam a vida coletiva, que enquadram a vida bio-lgica e dentro dele que os indivduos evo-luem ao mesmo tempo em que seu corpo, seuspensamentos, suas aes, so formatados poresse espao social. Por outro lado, necessriotambm considerar os indivduos como atoressociais, definidos ao mesmo tempo por esse es-pao social no qual se inserem e pela conscin-cia de agir sobre esse espao 2.

    Assim, preciso hoje reconhecer que a na-tureza das formas de procura de cuidados va-

    riada e complexa, que se diferencia de um indi-

    vduo a outro, que pode variar em um mesmo

    indivduo de um episdio de doena a outro e

    que a procura de cuidados est sujeita a ques-

    tionamentos repetidos em cada uma das etapas

    do processo de manuteno da sade. De fato, a

    natureza e a seqncia dos encaminhamentos

    na procura de cuidados so determinadas por

    uma srie de variveis situacionais, sociais, psi-

    colgicas, econmicas e outras. A procura de

    cuidados est condicionada tanto pelas atitu-

    des, os valores e as ideologias quanto pelos per-

    fis da doena, o acesso econmico e a disponibi-

    lidade de tecnologias 1 (p. 330).Desta forma, o desafio lanado pela multi-

    plicidade de escolhas, de condutas, de tratamen-

    tos adotados simultaneamente, ou em srie, por

    um mesmo indivduo, no pode ser apreendido

    por uma abordagem centrada no sujeito, estri-

    tamente individual, interacionista e que retm

    somente a estratgia de escolha a fim de chegar

    na sua lgica. Isso conduziria a uma interpreta-

    o cognitiva que negligencia a incorporao

    de cuidados no social. Pois o pluralismo tera-

    putico amplamente o resultado de relaes

    sociais que transcendem as condutas indivi-

    duais. Elas exercem presso sobre as escolhas;elas orientam, favorecem ou penalizam as de-

    cises 3 (p. 7).Fassin 4,5 demonstrou, a partir de estudos

    na frica de diversos itinerrios teraputicos,que os caminhos percorridos pelo doente procura de diagnstico e tratamento surge co-

    mo resultado de mltiplas lgicas, de causas es-

    truturais (sistemas de representaes da doen-

    a, posio do indivduo na sociedade) e de cau-

    sas conjunturais (modificao da situao fi-

    nanceira, conselho de um vizinho) que torna

    em vo toda tentativa de estrita formaliza o.

    (...) Portanto, da necessidade de resituar a se-qncia de eventos contextuais da procura de

    cuidados em relao complexidade dos fatores

    sociais que ela implica 4 (p. 118).J no Brasil, Alves & Souza 6 desenvolveram

    uma importante reviso da literatura scio-an-tropolgica sobre o processo de escolha e ava-liao de tratamento para problemas de sade,enfocando as diferentes abordagens e interpre-taes e o prprio conceito de itinerrio tera-putico. Segundo os autores necessrio queos estudos sobre itinerrio teraputico possam

    descer ao nvel dos procedimentos usados pelos

    autores na interpretao de suas experincias e

    delineamento de suas aes sem, contudo, per-

    der o domnio dos macroprocessos scio-cultu-

    rais 6 (p. 132). Alves & Souza, baseando-se emRabelo 7, propem que no existe um padronico e pr-definido no processo de busca tera-putica e que o itinerrio um processo com-plexo no podendo ser reduzido a generalida-des que procedem pela descoberta de leis que or-

    denam o social. A recorrncia simultnea a v-

    rios tratamentos e a existncia de vises discor-

    dantes e at mesmo contraditrias sobre a

    questo teraputica evidenciam que tanto a

    doena como a cura so experincias intersub-

    jetivamente construdas, em que o paciente, sua

    famlia e aqueles que vivem prximos esto con-

    tinuamente negociando significados 6 (p. 136).Nos estudos sobre itinerrios teraputicos importante, portanto, que no se desconheaessa realidade, tal como o fizeram as teorias decarter nomolgico-dedutivo que procuraramexplicar as aes individuais baseadas em ar-gumentos previamente estabelecidos. Na in-terpretao de um determinado processo de es-

    colha teraputica preciso que se apresente o

    sujeito desse processo como algum que com-

    partilha com outros um estoque de crenas e re-

    ceitas prticas para lidar com o mundo, receitas

    estas que foram adquiridas (e ampliadas, refor-

    muladas ou mesmo descartadas) ao longo de

    uma trajetria biogrfica singular. Porm, reco-

    nhecer a existncia de estruturas sociais no sig-

    nifica dizer que elas sejam determinantes dasaes humanas. Uma coisa o significado obje-

    tivo de um dado fenmeno scio-cultural defi-

    nido por um padro institucionalizado; outra

    coisa, o modo particular como o indivduo defi-

    ne a sua situao no seio dele 6 (p. 133). Em es-tudo anterior, Alves 8j evidenciava o complexoprocesso de busca teraputica com base na ex-perincia da enfermidade dos indivduos comosendo uma expresso no antagnica das di-menses cognitivas (individuais) e sociais (co-letivas).

    Tais consideraes tericas so fundamen-

    tais para o estudo do itinerrio teraputico, per-mitindo-nos pr em relevncia dois aspectos

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    essenciais e interligados: as definies de si-tuao e a natureza das relaes intersubjetivasno processo de tomada de deciso. Da a ne-cessidade de reformular no s o prprio con-ceito de itinerrio teraputico, como propem

    Alves & Souza 6, mas tambm a forma de abor-dar o tema, atendendo ao desafio, tanto para a

    Antropologia como para a Sade Coletiva, deconciliar o individual e o coletivo, o material eo imaterial.

    Desta forma, foi em Paranagu, Paran, Bra-sil, que a problemtica do estudo centrada narelao entre situaes de vida, pobreza e sa-de, buscou uma ilustrao concreta da diversi-dade e complexidade na procura de cuidadosteraputicos por indivduos de baixa renda. Es-se estudo, parte de uma tese de Doutorado, sedesenvolveu no mbito do programa interdis-ciplinar de pesquisa Espao Urbano, Situaesde Vida e Sade: O Caso de Paranagu, do Dou-torado em Meio Ambiente e Desenvolvimentoda Universidade Federal do Paran e da Uni-versit de Bordeaux 2, que abordou as relaesentre desigualdades sociais e de sade 9.

    A situao observada em Paranagu a deuma cidade de porte mdio (115 mil habitan-tes em 1997), com densidade humana elevada,rpido crescimento demogrfico (4% ao anodesde 1940) e com problemas importantes deurbanismo e emprego. A cidade apresentou nosltimos 40 anos um quadro de crescimento po-pulacional acelerado em que as dinmicas deocupao territorial no foram acompanhadasda correspondente expanso da infra-estruturade abastecimento de gua, esgoto, coleta de li-xo, pavimentao e energia eltrica, e amplia-o da cobertura de servios essenciais, comoeducao e sade. O rpido crescimento urba-no, decorrente de migraes rural-urbano e ur-bano-urbano e de taxas de crescimento vege-tativo ainda elevadas, acarretou no s trans-formaes no meio fsico, mas tambm trans-formaes sociais. Essas transformaes na so-

    ciedade no ocorreram de forma homogneano espao urbano, originando uma diversifica-o que compe o atual quadro de heteroge-neidades espaciais e desigualdades sociais 10.

    O estado de sade da populao avaliadono seu conjunto pelos dados de mortalidade emorbidade, revela vrias situaes: mudanagradativa do perfil de mortalidade em que co-meam a aparecer nitidamente os problemasdo envelhecimento populacional, porm aindapersistem problemas revelados pelas altas ta-xas de mortalidade infantil e materna; outra si-tuao a persistncia de problemas infeccio-

    sos e parasitrios, sobretudo na populao in-fantil 11; na assistncia sade, embora parea

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    ter ocorrido um aumento do acesso da popula-o aos servios bsicos, questes importantescomo a assistncia adequada gestao e aoparto, no parecem ser extensivas a toda a po-pulao. Essas situaes retomam o problemadas disparidades em sade no s no senti dode constat-las, mas de como enfrent-las e su-per-las num contexto de grandes heteroge-neidades espaciais e desigualdades sociais.

    O tema das relaes entre itinerrios tera-puticos e pobreza est inserido neste contex-to local particular. As informaes sobre a si-tuao da cidade como um todo e as particula-ridades intra-urbanas, obtidas ao longo das pes-quisas interdisciplinar e disciplinar, constituemo pano de fundo dos questionamentos sobre abusca de cuidados teraputicos dos indivduoscom condies de vida precrias 2. O estudo foicentrado na capacidade desses indivduos emmobilizar recursos ou formular estratgias deenfrentamento de seus problemas cotidianos ede suas necessidades bsicas, e guiaram as hi-pteses de pesquisa, tais como: a capacidadede mobilizar recursos e formular estratgias modelada pela histria de vida, pela experin-cia vivida pelos indivduos e suas famlias, peladinmica individual que resulta disto ou atmesmo pela personalidade individual; cada uminterpreta e constri sua prpria situao devida, e estas situaes variam nas diferenteszonas da cidade e nos diferentes estratos scio-econmicos.

    A vida na cidade, de forma geral, apresentahoje uma disparidade crescente que divide asdiferentes categorias sociais, sobretudo em ter-mos de emprego, renda, moradia, meio fsico,alimentao e sade. A sade constitui um ele-mento central e essencial para a reproduodos grupos humanos, representando um cam-po propcio avaliao objetiva do quadro devida urbano, nos seus componentes materiaise sociais, e do que ele pode ocasionar sobre ocorpo fsico dos indivduos, constituindo as-

    sim, no campo antropolgico, um ngulo deanlise da sociedade, um campo revelador doseu funcionamento. As estratgias desenvol-vidas pelos indivduos e os discursos que asacompanham so elaborados a partir de insti-tuies, representaes coletivas e relaes so-ciais que os indivduos reinterpretam, recom-pem, em funo das situaes e restriesexistentes. A abordagem das dinmicas sociaisrequer assim que se busque entender a articu-lao entre o social e o cultural. Ela exige tam-bm que seja explorada a relao dialtica quesempre se estabelece, na construo das reali-

    dades sociais, entre as determinaes de car-ter estrutural e coletivo e o papel inovador das

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    atuaes individuais o que representa outrodesafio cientfico 11.

    Para levar em conta as dinmicas, os confli-tos, as contradies, nos distanciamos da visosegundo a qual as prticas e representaes in-dividuais seriam totalmente impostas pelo con-texto material, social e cultural de sua existn-cia. O desafio consiste em conciliar a atenolegtima dada ao ator individual com a preocu-pao de identificar o que, no seu universo cul-tural (complexo, diversificado e em transfor-mao), forma e informa as suas decises e suasescolhas. Este campo particularmente fecun-do para a abordagem da esfera pblica e parti-cular, do individual e coletivo, na medida emque sade e doena refletem-se no corpo dosindivduos. O tema das relaes entre itiner-rios teraputicos e pobreza pertinente e sus-ceptvel de contribuir para abordar as relaesentre o individual e o coletivo.

    A partir destas consideraes, foi em ter-mos de situaes de vida que foram abordadasessas questes. Esta noo, central a este estu-do, mostrou-se pertinente, pois associa a utili-zao que os atores sociais fazem de suas con-dies materiais e imateriais, em funo daspercepes que eles constroem dos problemase dificuldades aos quais esto submetidos, re-compondo e reinterpretando estes problemas.

    Alm disso, tem o mrito de permitir o dilogoentre o que, na existncia de um indivduo oude um grupo provm de fatores contextuaisproblemticos, sejam eles materiais, sociais ouculturais, e as interpretaes e combinaesque o indivduo faz em funo de suas prpriaspercepes, de seus objetivos e de sua capaci-dade em formular um projeto de vida. justa-mente nesse contexto dinmico que realiza-da a hierarquia dos problemas. A noo de si-tuaes de vida assim definida permite conci-liar a existncia de fatores objetivos de vulne-rabilidade (condies materiais e sociais de vi-da) e a ao do sujeito como intrprete do real,

    e se torna um instrumento interessante para acompreenso da vulnerabilidade 2. desta for-ma que foram pensados e analisados os itine-rrios teraputicos na cidade de Paranagu,procurando revelar no somente a diversidadee a pluralidade das escolhas, mas evidencian-do as estratgias complexas dos atores sociais,a partir do universo scio-cultural (individuale coletivo) em que se inserem e, sobretudo, dopapel dos indivduos enquanto sujeitos sociais(material e imaterial).

    Materiais e mtodos

    Num esforo de compreenso das diferentesdimenses do fenmeno de urbanizao, a con-seqncia metodolgica destas asseres aexistncia de complementaridade entre as an-lises das vrias formas de heterogeneidades:espaciais, scio-econmicas, sanitrias. O ali-cerce terico da interdisciplinaridade, aplicadoao estudo de Paranagu 2,9,11,12, parte da cons-truo de uma problemtica comum entre asdiferentes disciplinas participantes (epidemio-logia, antropologia, economia, geografia), on-de cada uma permanece como locus funda-mental de produo do saber, podendo dialo-gar atravs de espaos construdos que permi-tam tal colaborao, a saber: a escolha de umarea geogrfica e de um problema de pesquisacomum.

    Desta forma, o campo emprico de Parana-gu foi explorado em diferentes momentos (n-veis de anlise) e de diferentes formas: por ope-raes coletivas de pesquisa que visaram a cons-truir um diagnstico da situao global da ci-dade e viabilizar o dilogo entre pesquisadoresda equipe, graas construo de instrumen-tos comuns de definio e de descrio das di-ferenciaes do espao urbano do ponto de vis-ta espacial (zoneamento) e scio-econmico(estratificao social); por operaes indivi-duais (disciplinares), pesquisas epidemiolgi-ca e antropolgica.

    O primeiro nvel de anlise compreendeuum zoneamento (por meio da cartografia) dacidade que caracterizou as heterogeneidadesespaciais 9,10, a partir das seguintes variveis:histria do crescimento espacial da cidade, fun-es urbanas e ofertas de ser vios, densidadedemogrfica, nvel scio-econmico e de sa-neamento. No segundo nvel de anlise, foi ela-borada uma estratificao social da populao(anlise multivariada), que permitiu a descri-o das disparidades internas de cada zona 13.

    As variveis utilizadas foram: tipo de moradia,nmero de moradores/m2 do domiclio, esco-laridade do chefe de famlia, nmero de banhei-ros, bens de consumo e servios (mquina delavar roupa, vdeo cassete, freezer, carro, tele-viso em cores, rdio, empregada domstica).

    Aps a elaborao da estratificao social, asduas categorias (espao e a estratificao) fo-ram confrontadas 13.

    O grande desafio metodolgico para o estu-do antropolgico foi o de trabalhar com vriosnveis de anlise, em escalas sucessivas de apro-ximao da realidade, por meio de instrumen-

    tos e categorias de anlise que permitiram iralm da viso global da cidade.

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    Dentro desse quadro geral, o acompanha-mento e anlise dos itinerrios teraputicoscentrou-se nas famlias pertencentes a cama-das de baixa renda, mas com capacidades dife-rentes de mobilizao de recursos sociais e re-sidentes em duas zonas privilegiadas pela pes-quisa I lha de Valadares e Franjas 2. Para sele-cionar as famlias com situaes de vida dife-rentes (materiais e sociais), capazes de mode-lar de forma positiva ou negativa suas vidas co-tidianas, elaborou-se uma tipologia permitin-do relacionar as estratgias cotidianas e o qua-dro geral da cidade. Foram utilizados dois indi-cadores: as condies de vida materiais (estra-tificao social) e as condies sociais de exis-tncia. Este ltimo indicador compreendeu aspossibilidades de mobilizao de recursos so-ciais em termos de relaes sociais, e foi cons-trudo com base em variveis indicadoras dasredes sociais nas quais os indivduos esto in-seridos 13: Tipo de estrutura familiar residencial capazde mobilizar recursos intrafamiliares: famliascom poucas condies de mobilizao de re-cursos intrafamiliares (pessoas que moram so-zinhas e/ou pessoas sem estrutura familiar +famlias monoparentais + famlias nuclearescom filhos menores de 15 anos); famlias comcondies de mobilizao de recursos intrafa-miliares (famlias nucleares com filhos acimade 15 anos, famlias extensas); Existncia de laos familiares do chefe e/oucnjuge de famlia prximos ao local de mora-dia: nenhum dos dois membros apresenta la-os familiares prximos, um dos dois apresen-ta laos familiares prximos, os dois apresen-tam laos familiares prximos; Participao do chefe de famlia e/ou cn-

    juge nas atividades da sua religio: nenhumdos dois membros participa, somente um dosdois participa, o chefe e o cnjuge participam; Tempo de moradia em Paranagu do chefede famlia: migrante recente (< 5 anos), migran-

    te antigo (> 5 anos), nascido em Paranagu; O chefe de famlia sindicalizado: sim, no.Num primeiro momento, foram escolhidas

    75 famlias de forma a ilustrar cada um dos ti-pos encontrados e distribudas nas diferenteszonas da cidade, mas com uma concentraomaior nas duas zonas e nos tipos mais prec-rios. Essas 75 famlias foram objeto de entrevis-tas semidiretivas, a partir de um guia de infor-maes elaborado no sentido dos problemasencontrados pelas famlias e as respostas da-das a eles em relao aos seguintes temas: ali-mentao, sade, moradia, estrutura familiar

    residencial, relaes familiares e extra familia-res, aspectos da trajetria familiar, migratria e

    profissional, recursos financeiros, formas desociabilidade.

    Num segundo momento, foram seleciona-das vinte famlias para serem acompanhadas aolongo de seis meses, por meio da observaoparticipante, das prticas e estratgias de en-frentamento dos problemas cotidianos ligados sade, a partir de eventos concretos identifican-do a quais lgicas estas estratgias correspon-diam; entrevistas aprofundadas gravadas sobreeste tema foram igualmente realizadas nestaetapa da pesquisa. O processo de visitas sema-nais regulares permitiu a identificao de proble-mas de sade, assim como o acompanhamen-to e a forma como foram interpretados e resol-vidos (itinerrios teraputicos). Essa forma deacompanhamento dos itinerrios colocou emevidncia a importncia e a pertinncia da me-todologia da observao participante, que per-mitiu trocas importantes e um olhar in situ so-bre o processo da doena. Descrever os itiner-rios teraputicos a partir dos primeiros sinais dadoena at o seu trmino (havendo cura ou no)e suas conseqncias sobre as condies de vi-da e as transformaes da vida cotidiana e fami-liar, no tarefa fcil. O acompanhamento dosdoentes do comeo ao fim de seu itinerrio, dasescolhas realizadas, implica uma participaoimportante por parte do pesquisador duranteum perodo suficientemente longo para permi-tir uma presena durvel e consistente entre opesquisador e as pessoas com as quais trabalha.

    Diversidade, pluralidadee complexidade na buscapor cuidados teraputicos

    A procura de cuidados teraputicos, por partedo indivduo ou da famlia, origina-se de situa-es diversas, sendo a morbidade um fenme-no objetivo e subjetivo, no existindo uma de-marcao ntida entre as variaes da sade e

    da doena. Um indivduo pode sentir-se maisdoente, abandonar mais precocemente suas ati-vidades cotidianas, ausentar-se do trabalho pormais tempo, se sentir mais incomodado queoutro com os mesmos sintomas objetivos 14.Lenta ou bruscamente transita-se da normali-dade ao patolgico, desencadeando um pro-cesso complexo, quanto escolha do tipo derecurso a adotar, influenciado no s por fato-res objetivos, mas tambm pelas representa-es que interferem na explicao da doena,na opo por determinado recurso e nos itine-rrios em busca de cuidados teraputicos.

    Os resultados aqui apresentados seguem aordem de aprofundamento da anlise, partin-

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    do-se do quadro geral da cidade para as con-dutas individuais. Assim, os resultados do zo-neamento e da estratificao social mostram aexistncia de uma grande diversidade e hetero-geneidade no espao urbano em matria deambiente fsico, moradia, demografia e vida so-cial. O zoneamento espacial 10 compreende cin-co grandes zonas, cujas caractersticas descri-tivas se resumem da melhor zona em termosde crescimento espacial, infra-estrutura, servi-os e condies de vida, que se situam no cen-tro urbano, at as piores zonas como as Franjase Ilha de Valadares (Figura 1). A estratificaosocial 13 comportou um modelo final de trsestratos scio-econmicos: superior (222 fam-lias, 35% da populao total), mdio (240 fam-lias, 38%), inferior (177 famlias, 28%).

    O confronto entre esses dois instrumentosde anlise (Figura 2) demonstrou que mesmoexistindo uma forte correlao entre o recorteespacial e a distribuio da populao em fun-o da posio na hierarquia social, os trs es-tratos esto presentes em todas as zonas. A com-binao dessas duas dimenses (espacial e so-cial) constituiu o quadro geral de anlise que aantropologia no pode se contentar para ava-liar a pobreza e as desigualdades sociais, poiseste no permite desvendar as condies e di-ficuldades individuais ou familiares cotidianasno acesso aos bens e servios, na medida emque mltiplos fatores intervm na vida cotidia-na. Desta forma, a tipologia do potencial demobilizao de recursos sociais, permitiu avan-ar na aproximao das famlias a serem acom-panhadas no seu cotidiano, sendo que foramencontrados trs grandes tipos de situao quese caracterizam, sumariamente por: Tipo I: agrupa o maior nmero de famliascuja estrutura permite uma maior possibilida-de de mobilizao de recursos intrafamiliares,com chefes e/ou cnjuge que possuem laosfamiliares prximos ao local de moradia, parti-cipam de atividades de sua religio, nasceram

    em Paranagu e so sindicalizados. Apresen-tam todos os elementos para a mobilizao dediferentes redes de solidariedade (cidade, bair-ro, parentesco, trabalho); Tipo II: o nmero das famlias cuja estrutu-ra permite uma maior possibilidade de mobili-zao de recursos intrafamiliares diminui sen-sivelmente em relao ao nvel anterior, chefese/ou cnjuge que possuem laos familiaresprximos ao local de moradia diminui igual-mente, a maioria no possui laos familiaresprximos ao local de moradia, diminui a parti-cipao em atividades da religio, o nmero de

    chefes migrantes aumenta consideravelmenteem relao ao nvel anterior e a de chefes sin-

    dicalizados diminui. Grupo de famlias j esta-belecido na cidade, mas que apresenta dificul-dades para mobilizar recursos sociais em pra-ticamente todos os nveis; Tipo III: maior nmero de famlias cuja es-trutura no permite a mobilizao de recursosintrafamiliares e comunitrios: no possuemlaos familiares prximos ao local de moradia,no participam de atividades da religio, amaioria de migrantes recentes, no sindicali-zados. Grupo de famlias que acumula todos osfatores desfavorveis em relao mobilizaode recursos sociais.

    Ainda nesse nvel mais geral de anlise, oestudo de Novakoski 15 quanto utilizao deservios de sade e as trajetrias teraputicas,evidenciou disparidades espaciais e desigual-dades sociais relacionadas aos aspectos scio-econmicos. A trajetria teraputica demons-trou-se diferenciada em funo das queixas ouproblemas de sade serem considerados levesou graves. Para a busca de recursos para solu-o de problemas leves (Figura 3), o estudo ve-rificou que a automedicao freqentementeo primeiro recurso para 269 (88,2%) famlias,diminuindo significativamente, como medidassubseqentes. A procura de cuidados tradicio-nais menos freqente, mas predomina comosegunda opo para 63 (46,2%) entrevistados e44 (34,4%) recorrem a eles como terceira opo.

    A procura de servios de sade tambm apare-ce com menor freqncia, 181 (61,8%) comosegunda medida e para 68 (23,2%) como tercei-ra opo. Esta situao pode denotar que, aolongo da trajetria, parte dos problemas so-lucionado.

    A Figura 3 demonstra tambm que todas asfamlias entrevistadas buscam algum tipo desoluo para os episdios ou problemas desade, sendo que a maioria delas, 269 (80,5%),recorrem automedicao como primeira me-dida de soluo de seus problemas; no caso deinsucesso nesta etapa, 270 (80%) procuram um

    segundo recurso, destacando-se os servios for-mais de sade; a utilizao de uma terceira me-dida adotada por 122 (36,5%) casos, em rela-o s 334 famlias entrevistadas. Nessa medi-da, a diferena entre a busca de servios de sa-de e a procura de cuidados tradicionais rela-tivamente pequena.

    O estudo aponta que a automedicao e ouso indiscriminado de medicamentos bonspara tudo e para todos, na soluo de proble-mas de sade, aparentemente leves e comuns,podem provocar resultados inesperados e de-sastrosos. Essa prtica social alcana dimen-

    ses difceis de estimar, mas pode revelar, almdo aspecto cultural, a dificuldade de acesso aos

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    ITINERRIOS TERAPUTICOS EM SITUAES DE POBREZA 2455

    Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 22(11):2449-2463, nov, 2006

    Figura 1

    Zoneamento da cidade de Paranagu, Paran, Brasil.

    -

    Petrobrs

    Fospar

    Porto

    BAA DE PARANAGU

    RioIti

    ber

    Aeropo

    rto

    R.F.F

    .S.A.

    RioEmboguau

    Frigobrs

    Sadia

    Cami

    nhe

    sC

    ontain

    ers

    Curitiba

    Curitiba

    BR-277

    PR-4

    07Praias

    Riod

    aVila

    Praias

    0 2.500m

    Base Cartogrfica Prefeitura Municipal de Paranagu, 1966.

    Zoneamento

    Centro urbano

    Expanso porturia

    Expanso recente

    reas fora da amostra: setoresadministrativos, comerciais,pblicos, atividades porturias,reas no ocupadas

    rea fora de estudo

    Franjas

    Ilha de Valadares

    Tatiana E. Gerhardt, Eleusis R. Nazareno, Lourdes E. R. Novakoski.Fonte: Gerhardt 2.

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    Gerhardt TE2456

    Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 22(11):2449-2463, nov, 2006

    servios de sade, cuja oferta heterogenea-mente estruturada e distribuda, constituindoela mesma, fator gerador de desigualdades. Aanlise destas variveis por zonas e estratos so-ciais revelou que nas situaes leves, medidaem que a prtica da automedicao e a adoode cuidados tradicionais aumentam em rela-o aos estratos mdio e inferior, inversamenteh diminuio na procura de servios de sa-de. J para o estrato superior, a procura maior nestes ltimos.

    Quanto aos recursos utilizados frente a epis-dios considerados graves (Figura 4), 326 (97,6%)famlias costumam recorrer imediatamente aoatendimento mdico, em servios da rede p-blica, ambulatrios, pronto socorro, hospitais,consultrios mdicos e clnicas. O estudo cons-tata que em situaes de gravidade diferencia-

    da a busca de cuidados profissionais nos servi-os de sade est presente em todas as trajet-rias, ainda que em momentos diferentes; istono significa a resolutividade de todos os pro-blemas, mas representa percentual elevado,considerando-se que, dos 326 que recorrem deimediato a esse tipo de cuidado, somente 36(11%) no tiveram seus problemas soluciona-dos e continuaram a busca por outros recursos.

    Os resultados deste estudo demonstram queas famlias assumem condutas diferentes dian-te de problemas de sade considerados leves egraves. A diferenciao de situaes leves e

    graves tem como referencial a experincia acu-mulada pela prpria vivncia de determinados

    episdios, os hbitos culturais transmitidos deuma gerao para outra, o conhecimento in-corporado pelo contato com profissionais dasade, as mensagens veiculadas pelos meios decomunicao, a convivncia e o intercmbiode conhecimentos e experincias com amigose vizinhos, eis o que determina a escolha deum ou outro tipo de recurso. Entretanto, node forma linear como este estudo quantitativopode demonstrar. Outros estudos tm demons-trado 1,3,4,5,6,7,8,16 que nesse processo comuma simultaneidade de recursos utilizados. Destaforma, as questes aqui levantadas demanda-ram o desenvolvimento de um estudo qualita-tivo aprofundado, passando-se para outro n-vel de anlise. Ilustra-se dessa forma, a contri-buio da sade pblica para a antropologia,que pode por meio do enriquecimento de sua

    problemtica formular questes e hipteses depesquisa a cada etapa, situando os estudos decaso em um contexto mais amplo.

    Sendo assim, partindo dos resultados apre-sentados at o momento, Ilha de Valadares eFranjas foram as duas zonas escolhidas para oaprofundamento das questes envolvendo abusca teraputica, por se distinguirem clara-mente no plano do ambiente fsico, sanitrio,social e cultural. A primeira zona, de ocupaomais antiga e cuja populao originria depequenas comunidades de agricultores e pes-cadores da regio, est ainda ligada cultura

    rural, ao mesmo tempo em que se beneficiado quadro de vida urbano. Neste sentido, o pa-

    Figura 2

    Distribuio dos estratos scio-econmicos de acordo com as diferentes zonas da cidade de Paranagu,

    Paran, Brasil, 1996.

    % 0

    10

    20

    30

    40

    50

    60

    70

    80

    90

    100Superior

    Mdio

    Inferior

    Ilha de Valadares ZonasFranjasExpanso recenteExpanso porturiaCentro urbano

    Fonte: Gerhardt 2.2 = 102,95; p = 0,0.

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    ITINERRIOS TERAPUTICOS EM SITUAES DE POBREZA 2457

    Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 22(11):2449-2463, nov, 2006

    Figura 3

    rvore de recursos teraputicos utilizados para problemas considerados leves ou costumeiros pela populao

    de Paranagu, Paran, Brasil.

    Fonte: Adaptado de Novakoski 15.

    1a medida 2 a medida 3a medida

    52 CT 52 CT

    269 A 40 problemas solucionados

    177 SS 41 CT

    16 A 16 SS

    334 21 CT 1 problema solucionado

    4 SS 1 A

    10 A 3 CT

    44 SS 23 problemas solucionados

    11 CT 9 A

    A = Automedicao (uso de ervas, chs e remdios caseiros e de medicamentosadquiridos por conta prpria, como comprimidos, xaropes, pastilhas, pomadasentre outros, farmcia caseira)CT = Cuidados Tradicionais (terapeutas populares, balconista de farmcia,massagista, curandeiro, benzedeiro consultados fora da famlia)SS = Servio de Sade (servios pblicos e privados, sindicatos, empresasdo sistema de sade local)

    Problemas leves

    Resfriado e gripe 249 41,0%

    Dor de cabea 169 27,8%

    Dor de barriga 39 6,4%

    Febre 37 6,1%

    No especificado 24 3,9%

    Demais problemas 180 14,8%

    Figura 4

    rvore de recursos teraputicos utilizados para problemas considerados graves pela populao

    de Paranagu, Paran, Brasil.

    Fonte: Adaptado de Novakoski 15.

    1a medida 2 a medida 3a medida

    6 A 6 SS

    1 A 1 SS

    334 2 CT 1 SS

    24 A 8 CT

    326 SS 290 problemas solucionados

    12 CT 10 A

    A = Automedicao (uso de ervas, chs e remdios caseiros e de medicamentosadquiridos por conta prpria, como comprimidos, xaropes, pastilhas, pomadasentre outros, farmcia caseira)CT = Cuidados Tradicionais (terapeutas populares, balconista de farmcia,massagista, curandeiro, benzedeiro consultados fora da famlia)SS = Servio de Sade (servios pblicos e privados, sindicatos, empresasdo sistema de sade local)

    Problemas graves

    Febre 113 17,8%

    AIDS 64 10,1%

    Cncer 60 9,4%

    Dor forte e desconhecida 58 9,1%

    Diarria 41 6,5%

    Demais problemas 305 47,0%

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    Gerhardt TE2458

    Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 22(11):2449-2463, nov, 2006

    rentesco geograficamente prximo fornece sfamlias um quadro econmico e social quelhes permite resistir, at um certo ponto, pre-cariedade material. Ele constitui o elementomais estvel da estrutura social. A segunda zo-na, as Franjas, de ocupao recente e cuja po-pulao , na sua maioria, originria da pr-pria cidade de Paranagu, partilha muito maisa cultura urbana e encontra-se em uma situa-o de maior ruptura com o parentesco.

    Sendo assim, ser pobre na Ilha de Valadaresonde a rede de parentesco prxima e os laossociais intensos, conduz formulao de estra-tgias de sobrevivncia diferentes dos pobresque moram nas Franjas. O parentesco possuium papel importante entre essas famlias ca-rentes na sobrevivncia dos moradores de Va-ladares, o que j no acontece com os morado-res das Franjas, que buscam no seio do ncleofamiliar e da comunidade o desenvolvimentode estratgias de sobrevivncia. A valorizaoda famlia e do parentesco entre os mais desfa-vorecidos o resultado da forma como eles vi-vem suas prprias condies de vida, seus pro-

    jetos, e de como eles se posicionam frente soutras categorias sociais. Neste sentido, a vidafamiliar e comunitria no est isolada, ela in-sere-se na dinmica econmica e social da so-ciedade como um todo e na capacidade indivi-dual de integrar-se a ela.

    Ainda, a precariedade do mercado de traba-lho e a instabilidade do trabalho porturio sodificuldades importantes que boa parte da po-pulao de Paranagu deve enfrentar. A infor-malidade confere aos chefes de famlia um es-tatuto que lhes oferece menos possibilidadesde acumulao, mas trata-se de uma categoriainteressante para a anlise das situaes de vi-da, pois faz intervir diferentes estratgias colo-cadas em prtica pelos atores sociais. As zonasdas Franjas e da Ilha de Valadares concentramo maior nmero de chefes de famlia que nopossui trabalho formal, mas que tentam de al-

    guma forma ganhar sua vida no dia-a-dia. Exis-te uma diversidade de situaes em termos deprocura de trabalho informal. Estratgias socolocadas em prtica, particularmente apoian-do-se em redes de troca e de entre-ajuda ouapelando a instituies de ajuda social (prefei-tura, igrejas) que podem contribuir ao estabele-cimento de relaes de dependncia em rela-o a estas instituies. De certa forma, alm daajuda material que essas instituies prestam,elas funcionam como agentes de integrao, desocializao e de solidariedade para as popula-es mais carentes, porm esta ajuda no gra-

    tuita, ela exige uma contrapartida, seja em ter-mos monetrios, seja em termos de fidelidade.

    O acompanhamento da vida cotidiana deindivduos e de suas famlias dessas zonas mos-trou que as preocupaes relativas sade noconstituem uma prioridade em si mesmo, masfazem parte de um todo maior de restries cu-

    jas prioridades se expressam em termos de ma-nuteno das condies de vida da famlia e dasua reproduo fsica e social.

    A populao residente nas duas zonas estu-dadas revela diferentes escolhas em termos derecursos teraputicos: profissionais de sadeda rede de Ateno Bsica, dos hospitais, defarmcias, benzedeiros, curandeiros e autome-dicao (medicamentos convencionais e utili-zao de ervas medicinais). Os indivduos utili-zam assim as diferentes opes existentes su-cessivamente ou simultaneamente.

    A busca de cuidados teraputicos em Para-nagu revelou, em relao aos trs tipos de po-tencial de mobilizao de recurs os sociais, aexistncia de uma complexidade e pluralidadeque uma abordagem quantitativa no capazde evidenciar. Encontrou-se quatro grandes si-tuaes em relao a essa busca de cuidados: (i)apoio social e enfrentamento da doena; (ii) ex-cluso social e enfrentamento da doena; (iii)sade, religio e apoio social: ...se Deus quiserassim...; (iv) clientelismo e enfrentamento dadoena.

    Ilustrando a pluralidade e complexidadedessas situaes, toma-se o exemplo da primei-ra situao (apoio social e enfrentamento dadoena) que, quantitativamente, se caracterizapor famlias que acumulam todos os fatoresdesfavorveis em relao mobilizao de re-cursos sociais (Tipo III). Todavia, a anlise qua-litativa (observao participante e entrevistas)revelou outra realidade (Figura 5): famlias comcapacidade comprometida em relao repro-duo fsica, devido a problemas como ausn-cia ou instabilidade de emprego, dvidas im-portantes, alguns problemas de sade e de mo-radia, mas com certa capacidade de reprodu-

    o social devido ausncia de problemas deconflitos familiares internos e externos, pro-blemas de drogas, alcoolismo e prostituio nafamlia, e com alta capacidade de mobilizaode recursos familiares e comunitrios. Esta l-tima caracterstica se deve ao fato de as mulhe-res possurem uma ampla capacidade indivi-dual de desenvolver estratgias individuais ecoletivas, por meio de uma rede intensa de en-tre-ajuda familiar e comunitria, mesmo o pa-rentesco se situando distante geograficamente.

    A busca de cuidados teraputicos nessa situa-o ilustrada na Figura 5. A famlia 1 reside na

    zona das Franjas, mas possui uma rede de en-tre-ajuda familiar e comunitria muito inten-

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    ITINERRIOS TERAPUTICOS EM SITUAES DE POBREZA 2459

    Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 22(11):2449-2463, nov, 2006

    Figura 5

    Exemplo de um itinerrio teraputico na situao de apoio social e enfrentamento da doena. Paranagu, Paran, Brasil, 1999.

    1o dia 2o dia 3o dia 4o dia 5o dia 6o dia Ms seguinte

    Primeiros sintomas Sintomas evoluem GAPER (Grupo de Secretaria Muni- Casa da av na Melhora dos Sintomas recomeam, Apoio a Pessoas cipal de Sade Ilha de Valadares sintomas assim como a busca

    Chs com ervas PS outro com Doenas (encaminhamento teraputica a partirmedicinais (consulta) Respiratrias) ao GAPER + Vereadora (cesta Interrupo do da mobilizao dos

    consulta) bsica) tratamento recursos sociaisPS prximo PA (mdicos Pastoral da Criana (medicamentos e disponveis(consulta) da capital) (vale-transporte) PS da SMS (1/3 GAPER (consulta inalaes farmcia

    medicamentos ) somente para o casei ra )Tratamento Tratamento Secretaria Muni- ms seguinte)(medicamentos (medicamentos cipal de Sade Farmcia do e ina laes; d is - e ina laes ) (encaminhamento s indicato ( restante Medicamentos +tribudos entre ao GAPER) dos medicamentos) Chs com ervasos 4 filhos; Chs com ervas medicinaispreveno) medicinais Chs com ervas

    medicinais

    Filha sob os cuidados de uma vizinha Filha sob os cuidados da av

    Tipos de ajuda: conselhos, medicamentos, vale-transporte, cesta bsica, Tipos de ajuda: apoio material (moradia, alimentao); apoiocontatos nos servios de sade, apoio religioso moral (conselhos, tomada de decises, compartilhar informaes);

    monitoramento da doena

    Tipos de problemas ressentidos e expressos Recursos mobilizados PapelReproduo fsica Reproduo social Familiares Externos

    Alim Mor IM S AT IT Div CF CFI DP Alcoo AD AR VD VR Trab Relig H M

    0 1 0 2 2 2 1 0 0 0 2 2 2 2 2 2 2 0 2

    Alim = alimentao; Mor = moradia; IM = instabilidade moradia; S = sade; AT = ausncia trabalho; IT = instabilidade trabalho;Div = dvidas financeiras; CF = conflitos familiares; CFI = conflitos familiares internos; DP = drogas, prostituio; Alcoo = alcoolismos;

    AD = ajuda dada; AR = ajuda recebida; VD = vizinha dado; VR = vizinha recebido; Trab = trabalho; Relig = religio.Pontuao: 0 = inexistente; 1 = presente; 2 = fortemente presente.

    Situao sntese: Capacidade comprometida em relao a reproduo fsica, devido a problemas como ausncia ou instabilidade

    de emprego, dvidas importantes, alguns problemas de sade e de moradia; Certa capacidade de reproduo social, devido ausncia de problemas de conflitos familiares internos e externos,

    problemas de drogas, alcoolismo e prostituio na famlia; Alta mobilizao de recursos familiares e comunitrios (conforme figura abaixo).

    Redes de entre-ajuda teraputica entre famlias aparentadas e no-aparentadas.

    Famlia 2

    Famlia 1 Famlia 3

    Famlia 4 (vizinho) Famlia 5 (vizinha)

    Pastoral da Criana,Igreja Assemblia de Deus,

    Vereador, medicamentosrecebidos de uma vizinha

    Prefeitura, IgrejaAssemblia de Deus

    Prefeitura,Pastoral da Sade,Pastoral da Criana

    Penso (viva), compra de medicamentose passagens transporte coletivo

    Aportes externos

    Troca de produtos

    Famlias com laos de parentesco

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    Gerhardt TE2460

    Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 22(11):2449-2463, nov, 2006

    sa. As famlias aparentadas moram distantesgeograficamente sem que isso impea a mobi-lizao de apoio em caso de doena (por exem-plo, a mobilizao da famlia 2, residente naIlha de Valadares, durante um certo perodo detempo para cuidar dos filhos doentes). Da mes-ma forma, simultaneamente, mobiliza apoioem entidades religiosas diversas (catlica e pen-tecostais) como forma de garantir algum supri-mento em termos de medicamentos ou alimen-tos. Alm disso, a busca teraputica envolve aautomedicao e a utilizao de vrios servi-os de sade da rede de Ateno Bsica local,independente da sua localizao. Sua forma deenfrentar e de minimizar o impacto dos even-tos imprevistos sobre a sade dos membros desua famlia depende em muito da sua capaci-dade em tomar decises individuais, ao mes-mo tempo em que mobiliza recursos coletivos,mesmo devendo mobilizar outros recursos quepermitam percorrer toda a cidade para tal.

    A segunda situao (excluso social e enfren-tamento da doena), ilustra exatamente a si-tuao inversa: quantitativamente, se caracte-riza por famlias que acumulam todos os fato-res favorveis em relao mobilizao de re-cursos sociais (Tipo I). Todavia, a anlise qua-litativa revelou famlias com baixa capacidadede reproduo fsica, devido a importantes pro-blemas materiais e fsicos (moradia, emprego,sade, alimentao); baixa capacidade de re-produo social, devido a importantes proble-mas de conflitos familiares internos e externos,problemas de drogas, alcoolismo e prostituiona famlia; certa capacidade de mobilizao derecursos familiares (mas com dificuldades), nomobilizao de recursos externos famlia,muitas vezes por incapacidade da me e noparticipao do pai. A no mobilizao de re-cursos familiares (apesar de terem a rede deparentesco situada prxima geograficamente)e comunitrios se deve ao fato de que as mu-lheres apresentam uma situao social extre-

    mamente frgil, a ponto de se encontrarem psi-cologicamente depressivas, fisicamente debili-tadas e socialmente sozinhas. Este estado nopermite a mobilizao de nenhum recurso fa-miliar ou comunitrio, fato que repercute deforma bastante negativa na sade dos indiv-duos que compem o ncleo familiar, deixan-do muitas vezes antever um comportamentopassivo diante de condutas a serem tomadas.La um exemplo dessa situao: ela reside naIlha de Valadares e sua rede de entre-ajuda, se que existe uma, bastante reduzida. Ela ca-tlica e privilegia a utilizao de servios de sa-

    de, ao mesmo tempo em que busca cuidado te-raputico junto a curandeiros e benzedeiros.

    Os intensos conflitos familiares e com seu pa-rentesco, sua doena crnica que a impede fi-sicamente de tomar em mos sua prpria vida,a impede ainda mais de mobilizar outros tiposde recursos, sobretudo comunitrios, e de mi-nimizar a vulnerabilidade das crianas frente doena, mesmo as mais simples (parasitoses,problemas de pele, infeces respiratrias).

    Essas duas situaes mostram que as formade enfrentar a doena e de minimizar os im-pactos de eventos imprevistos sobre a sadedos indivduos deve-se muito capacidade in-dividual de tomar decises, ao mesmo tempoem que se mobiliza redes coletivas de entre-ajuda e outros tipos de recursos sociais, mes-mo havendo influncia das concepes de sa-de, da doena e do corpo (no abordados nestetexto), e dos recursos de sade di sponveis. Amaneira como colocam em prtica o conheci-mento ou o modo pelos quais eles e nfrentamos eventos (neste caso, a doena), pode vir aperturbar o frgil equilbrio de suas vidas coti-dianas. Como observado por Fonseca 17 em ou-tros contextos, em Paranagu, so as mulheres,que mesmo em contextos de grandes dificul-dades materiais, agem como atores de suas si-tuaes de vida.

    Os itinerrios e escolhas teraputicas foramanalisados, portanto, no somente como umestado crnico ou agudo, mas como o resulta-do de um processo. A sade se insere nas estra-tgias individuais e familiares, ao mesmo tem-po em que se apia em dife rentes tipos de re-cursos coletivos. Os itinerrios observados ilus-tram a prtica cotidiana de recursos frente adoena, onde diferentes estratgias incorpo-ram diferentes escolhas e diferentes alternati-vas que no se excluem e que so, ao contrrio,plurais. Eles revelam um processo no qual searticula o individual e o coletivo nas estratgiasde enfrentamento colocadas em prtica por in-divduos capazes de mobilizar recursos mate-riais e imateriais.

    O que se observa igualmente, que as ativi-dades ligadas sade se desenvolvem em casa,com atividades que compreendem no somen-te os primeiros cuidados, mas a avaliao doestado de sade e as decises sobre o tipo derecurso a ser mobilizado. Seja qual for o graude dificuldade econmica, este no o nicoem questo quando se trata de sade. s difi-culdades de acesso econmico e geogrficoacrescenta-se o contexto cultural, que no seresume s crenas e condutas individuais. En-volvem tambm o dilogo entre os diferentesatores, fato primordial para a compreenso da

    natureza do problema e a sua soluo. Igual-mente, o espao intervm seguramente no aces-

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    ITINERRIOS TERAPUTICOS EM SITUAES DE POBREZA 2461

    Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 22(11):2449-2463, nov, 2006

    so aos servios de sade, mas torna-se secun-drio quando se trata de resolver um problemapara as famlias que possuem certa capacidadeem desenvolver estratgias. As conseqnciasda situao econmica, espacial e ambientalnum mesmo local no so as mesmas para todosos indivduos. Como observou Raynaut 16,18,19,ao mesmo tempo em que alguns perdem o ru-mo e encontram-se presos a um ciclo dificil-mente reversvel, outros, ao contrrio, conse-guem reagir e, s vezes, tirar vantagens das pos-sibilidades que lhes so oferecidas.

    Consideraes finais

    Com base nessas informaes algumas consi-deraes podem ser feitas, sobretudo em rela-o existncia de uma pluralidade de fatoresque intervm na escolha dos indivduos, queatravs de um estudo aprofundado pode sercolocado em evidncia. Tambm igualmenteimportante, a abordagem interdisciplinar, pa-no de fundo desta pesquisa, permitiu a interfa-ce entre as diferentes disciplinas, momentoscruciais para conduzir o aprofundamento daproblemtica, como na interpretao, anlise econtextualizao dos resultados.

    O que fica evidenciado neste estudo quealm dos limites das condies materiais de vi-da, os indivduos constroem as estratgias devida de acordo com suas capacidades, suas his-trias de vida e suas experincias individuais.

    A capacidade de ao dos indivduos em Para-nagu permite questionamentos sobre as rela-es entre condies de vida e estado de sa-de, relao que no possui sempre uma deter-minao direta, sendo modulada pelo savoir

    fairedas mulheres em situao de pobreza (ca-pacidade de adaptao ao consumo restritivo ede ter mltiplas relaes), portanto pelas ca-ractersticas do sujeito, do problema e da per-cepo de sade e da configurao do sistema

    de sade.As alternativas de escolha teraputica tam-bm so mltiplas e vo desde a informal (au-tomedicao, conselho ou tratamento recomen-dado por parente, amigo, vizinho...), passandopela popular (curandeiros, benzedeiros, vo-vs...), at a profissional. Cada uma possuivantagens e desvantagens e so escolhidas emfuno das disponibilidades circunstanciais edas explicaes culturalmente aceitas pelo in-divduo e seu grupo. As estruturas sociais utili-zadas e as estratgias desenvolvidas em Para-nagu compreendem as relaes familiares e

    de vizinhana (desempenhando o papel prin-cipal), a integrao a redes de solidariedade or-

    ganizadas em torno das igrejas, a integraoem redes sociais e polticas de clientelismo quepodem dar acesso s cestas bsicas. Sendo as-sim, num pas como o Brasil, fortemente mar-cado pela diversidade cultural, pela mobilida-de, esses valores de solidariedade, de ajuda, asrelaes clientelistas de proteo do depen-dente e de fidelidade ao patro desempenhamum papel essencial na construo dos laos so-ciais entre os indivduos.

    A diversidade e a pluralidade de fatores queesto presentes na sade e na doena so ain-da portadores de mltiplos sentidos: pluralida-de de condutas, pluralidade de terapeutas, plu-ralidade de etiologias (causas), pluralidade depercepes e de vises de mundo. Os resulta-dos deste estudo no nos deixam, portanto,pensar na doena, suas causas e seu tratamen-to de forma linear onde s h lugar para umaforma de resoluo do problema. Torna-se evi-dente a necessidade de considerar que dentrodo contexto no qual est inserida a vida coti-diana dos indivduos, existe uma possibilidade,um espao, uma margem onde os indivduos,sendo atores de suas prprias vidas, desenvol-vem estratgias de enfrentamento aos proble-mas que lhes so impostos e, desta forma, cons-troem suas prprias situaes de vida. Essas es-tratgias incluem as modalidades de manejo doquadro de vida material e social restritivo e ex-pressam as diferentes capacidades individuais.

    Por outro lado, o nvel de anlise macrosso-cial trouxe contribuies importantes, permi-tindo construir um quadro geral dentro doqual evoluem as diferentes situaes existen-tes. Para compreender a relao entre itiner-rio teraputico, sade e pobreza, algumas ve-zes ntida e em outros casos pouco expressiva,foi necessrio situar as estratgias e as lgicasutilizadas pelas populaes nos diferentes n-veis onde se desenvolvem.

    Desta forma, algumas questes levantadasno nvel mais global foram retomadas: as zonas

    da cidade no so homogneas, pois dentro de-las co-residem diferentes categorias sociaisque, mesmo se situando em um mesmo con-texto espacial, dispem de meios distintos pa-ra encontrar respostas aos problemas que seapresentam. A sade dos indivduos expressa oimpacto dos problemas materiais sobre o cor-po, e permite, de um certo modo, uma leituradestas relaes. Por outro lado, existem meca-nismos de regulao ou de perturbao da sa-de e da doena que so de ordem social e cul-tural, a saber: papel das relaes sociais (fami-liares e comunitrias); solidariedades que as

    fortalecem ou conflitos que as dividem comomediadores entre o indivduo e seu ambiente

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    Gerhardt TE2462

    Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 22(11):2449-2463, nov, 2006

    fsico. Os comportamentos e opinies de indi-vduos dependem em grande parte das estru-turas nas quais eles esto inseridos e do siste-ma de valores e normas veiculados pelo meiosocial ao qual fazem referncia, e que governamas relaes entre ambiente-sade-sociedade;conseqncias dos comportamentos indivi-duais em relao s desordens corporais (fsi-cas), de acordo com as representaes do corpoe da doena e as respostas propostas pelas dife-rentes possibilidades de cuidados em sade.

    Sendo assim, a partir do momento em queno nos contentamos em saber que o estado desade de uma populao um reflexo passi-vo de suas condies de vida materiais, in -dispensvel levar em conta as respostas sociaisque so dadas aos problemas que se apresen-tam, sob a forma de gesto social, no exclusi-vamente da sade e da doena, mas tambmda vida cotidiana como um todo. Isto implicaum esforo de compreenso dos problemas li-gados sade e a capacidade de mobilizaode recursos sociais, capazes de dar um tipo deresposta aos problemas encontrados, e das tra-

    jetrias sociais que levam os indivduos a seencontrarem em tal situao, que vo muitoalm do modelo biomdico.

    Os itinerrios teraputicos dependem deestratgias complexas fundamentadas na ela-borao de relaes sociais e de prticas de in-sero social. Como tambm fora apontado por

    Alves & Souza 6 e Raynaut 20, a contribuio daantropologia se d na interpretao destes com-portamentos: no simplesmente como estrat-

    gias prticas, funcionais, materiais (respostasadaptativas carncia de recursos, redes es-pontneas de seguro social), mas na evidn-cia de que essas relaes sociais existem inde-pendentemente das funes prticas que po-dem cumprir nas situaes de crise, ou seja,tambm por meio da linguagem simblica deconstruo de relaes sociais, na essncia nobiolgica, que contribuem para remodelar e arecriar o espao de recursos no interior do qualse resolvem os problemas de ordem biolgica.O imaterial (neste caso uma concepo das re-laes sociais) reveste, portanto, uma eficciamaterial (biolgica). Assim, o estado de sadedos indivduos (determinante para grupos so-ciais se reproduzirem fisicamente) est vincu-lado a fatores imateriais como os objetivos e osvalores sociais que estruturam as relaes in-terpessoais, refletindo tambm a posio que oindivduo ocupa dentro da estrutura social eeconmica de Paranagu. No entanto, cada um indivduo, famlia, grupo mantm um espa-o de atuao prprio que lhe permite intervircomo ator da sua prpria existncia: reinter-pretando as condies externas s quais ele es-t submetido e elaborando a sua situao de vi-da: realidade existencial quotidiana qual eleimpe, com mais ou menos fora, conforme oscasos, a sua viso. Ele elabora assim, no decor-rer da sua histria pessoal, sua prpria expe-rincia de sujeito: conscincia e olhar distan-ciado sobre o que, em torno dele, do domniodo material e do imaterial 20.

    Resumo

    As prticas e estratgias da populao de baixa renda

    no enfrentamento de problemas cotidianos, sobretudo

    em relao procura de cuidados em sade, so ana-

    lisadas por meio dos itinerrios teraputicos. Desven-

    dar as formas de enfrentamento dessa populao, no

    que se refere ao seu processo sade-doena, implica

    identificar as estratgias individuais e coletivas e os

    significados destas dinmicas sociais relacionadas di-

    reta ou indiretamente com a sade. A busca de cuida-

    dos teraputicos aqui descrita e analisada em rela-

    o s prticas scio-culturais de sade em termos dos

    caminhos percorridos pelo indivduo, na tentativa de

    solucionar seus problemas de sade. Para tanto, o es-

    tudo indica uma opo metodolgica (interdiscipli-

    nar e plurimetodologia) e conceitual relacionando

    conceitos de prticas, estratgias, situaes de vida e

    sade. Parte-se do princpio de que as formas de en-

    frentamento dos problemas de sade demandam a

    compreenso das estratgias colocadas em prtica em

    um processo de (re)apropriao e (re)construo de sa-

    beres. Igualmente importante a identificao das re-

    des de apoio social, assim como da capacidade indivi-

    dual em mobilizar tais recursos. O reconhecimento

    dessas prticas permite o (re)direcionamento das aes

    em Sade Coletiva.

    Assistncia Sade; Fatores Scio-econmicos; Reso-

    luo de Problemas

  • 8/7/2019 # Benzimentos

    15/15

    ITINERRIOS TERAPUTICOS EM SITUAES DE POBREZA 2463

    Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 22(11):2449-2463, nov, 2006

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    Recebido em 04/Out/2005Verso final reapresentada em 03/Abr/2006Aprovado em 17/Abr/2006