resumo · 1 a reforma gerencial do orçamento: em busca de múltiplos significados. autoria: carlos...

17
1 A Reforma Gerencial do Orçamento: Em Busca de Múltiplos Significados. Autoria: Carlos Leonardo Klein Barcelos, Paulo Carlos du Pin Calmon Resumo O objetivo desse trabalho é analisar o processo decisório relativo à Reforma Gerencial do Orçamento (RGO) ocorrida em 2000. Com esse intuito, utiliza-se a estrutura narrativa proposta por Barzelay (2001) para realização de estudos e combina-se essa análise com o quadro referencial proposto por Allison e Zelikow (1999) que propõe a existência de três paradigmas ou “modelos” para análise do processo decisório no setor público. O Modelo do Ator Racional (Modelo I) propõe que políticas públicas são decorrentes de escolhas deliberadas do governo e objetivam alcançar objetivos claramente determinados na função de preferências dos tomadores de decisão. Adeptos do Modelo I preconizam a predominância da Lógica da Apropriação (March, 1994). O Modelo da Política Burocrática (Modelo II) e o Modelo da Política Burocrática (Modelo III) preconizam a predominância de diferentes lógicas, onde prevalece um conjunto de variáveis organizacionais e políticas que influenciam o processo de tomada de decisão. Esse estudo de caso demonstra que a análise do processo decisório no setor público brasileiro pode se beneficiar da aplicação de modelos multiparadigmáticos, na medida em que fornece uma perspectiva mais rica e mais abrangente dos condicionantes da tomada de decisão no governo. Introdução Especialmente a partir de meados do século do XX, profissionais e pesquisadores do campo da orçamentação pública têm demonstrado grande atração pelo tema da “reforma orçamentária” (KELLY, 2005; NICE, 2002; JONES, 1996; WILDAVSKY, 1961). Esse fascínio está bem traduzido, tanto pelas inúmeras tentativas de reinventar o modo como se processa a orçamentação pública i , quanto pela abundante literatura acadêmica que se debruça sobre o assunto. Em boa medida, esse apetite por remodelar e rotular ii o orçamento público parece decorrer da necessidade de adaptá-lo às transformações do ambiente em que se insere (Lee, 2008; Rubin, 2006; Koven, 1999) e da tentativa de reinterpretá-lo em face dos novos significados, subjacentes às mudanças institucionais. Como um sistema aberto, o processo orçamentário reage às metamorfoses políticas, econômicas, sociais e tecnológicas mais intensas, ainda que de forma assimétrica e não-sincronizada. Nice (2002), Kelly (2005) e Schlesinger (1986) esclarecem que as reformas orçamentárias possuem uma natureza cíclica, mas advertem que cada recorrência é um novo episódio, num novo contexto, com novos eventos e sentidos a serem compreendidos. Reformas orçamentárias, portanto, não são geradas espontaneamente e nem ocorrem num vácuo social. No Brasil, “os processos de planejamento e orçamento assumiram, a partir do ano de 2000, uma feição especial. A experiência acumulada nesta matéria e uma nova concepção de Estado ensejaram a introdução de mudanças estruturais na forma de pensar o planejamento e a orçamentação” (CORE, 2001, p. 219). A Reforma Gerencial do Orçamento (RGO), como ficou conhecida, iii abrange aspectos relacionados à lógica de planejamento, à orientação programática do orçamento e aos resultados fiscais a perseguir, e alcança a todos os entes federativos da União. Embora episódios cruciais como este decorram – não apenas de escolhas deliberadas pelo governo, mas, – notadamente das interações organizacionais e dos desenlaces políticos, a interpretação que tem prevalecido iv nas análises que focalizam a RGO parecem restringir-se à primeira perspectiva: a do ator governamental racional e unificado. Ao se observar as drásticas mudanças no planejamento e na orçamentação pública, assim como as reformas que as conduzem, unicamente pela perspectiva da trilha técnica, parte importante de seu significado é negligenciada. Por mais refinados que pareçam, ou por mais sofisticados que se mostrem os instrumentos analíticos e a lógica inerente aos novos modelos, os avanços e retrocessos do processo orçamentário não se resumem às escolhas de atores pretensamente racionais. Ainda que esse marco de referência habitual seja útil para alguns propósitos, é evidente que ele deve ser complementado por referenciais baseadas em outros fundamentos teóricos, como por exemplo, aquelas cuja atenção está centrada no comportamento das organizações ou, ainda, nos atores políticos envolvidos com a decisão.

Upload: lenga

Post on 26-Jan-2019

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

A Reforma Gerencial do Orçamento: Em Busca de Múltiplos Significados.

Autoria: Carlos Leonardo Klein Barcelos, Paulo Carlos du Pin Calmon

Resumo O objetivo desse trabalho é analisar o processo decisório relativo à Reforma Gerencial do Orçamento (RGO) ocorrida em 2000. Com esse intuito, utiliza-se a estrutura narrativa proposta por Barzelay (2001) para realização de estudos e combina-se essa análise com o quadro referencial proposto por Allison e Zelikow (1999) que propõe a existência de três paradigmas ou “modelos” para análise do processo decisório no setor público. O Modelo do Ator Racional (Modelo I) propõe que políticas públicas são decorrentes de escolhas deliberadas do governo e objetivam alcançar objetivos claramente determinados na função de preferências dos tomadores de decisão. Adeptos do Modelo I preconizam a predominância da Lógica da Apropriação (March, 1994). O Modelo da Política Burocrática (Modelo II) e o Modelo da Política Burocrática (Modelo III) preconizam a predominância de diferentes lógicas, onde prevalece um conjunto de variáveis organizacionais e políticas que influenciam o processo de tomada de decisão. Esse estudo de caso demonstra que a análise do processo decisório no setor público brasileiro pode se beneficiar da aplicação de modelos multiparadigmáticos, na medida em que fornece uma perspectiva mais rica e mais abrangente dos condicionantes da tomada de decisão no governo.

Introdução Especialmente a partir de meados do século do XX, profissionais e pesquisadores do campo

da orçamentação pública têm demonstrado grande atração pelo tema da “reforma orçamentária” (KELLY, 2005; NICE, 2002; JONES, 1996; WILDAVSKY, 1961). Esse fascínio está bem traduzido, tanto pelas inúmeras tentativas de reinventar o modo como se processa a orçamentação públicai, quanto pela abundante literatura acadêmica que se debruça sobre o assunto.

Em boa medida, esse apetite por remodelar e rotularii o orçamento público parece decorrer da necessidade de adaptá-lo às transformações do ambiente em que se insere (Lee, 2008; Rubin, 2006; Koven, 1999) e da tentativa de reinterpretá-lo em face dos novos significados, subjacentes às mudanças institucionais. Como um sistema aberto, o processo orçamentário reage às metamorfoses políticas, econômicas, sociais e tecnológicas mais intensas, ainda que de forma assimétrica e não-sincronizada.

Nice (2002), Kelly (2005) e Schlesinger (1986) esclarecem que as reformas orçamentárias possuem uma natureza cíclica, mas advertem que cada recorrência é um novo episódio, num novo contexto, com novos eventos e sentidos a serem compreendidos. Reformas orçamentárias, portanto, não são geradas espontaneamente e nem ocorrem num vácuo social.

No Brasil, “os processos de planejamento e orçamento assumiram, a partir do ano de 2000, uma feição especial. A experiência acumulada nesta matéria e uma nova concepção de Estado ensejaram a introdução de mudanças estruturais na forma de pensar o planejamento e a orçamentação” (CORE, 2001, p. 219). A Reforma Gerencial do Orçamento (RGO), como ficou conhecida,iii abrange aspectos relacionados à lógica de planejamento, à orientação programática do orçamento e aos resultados fiscais a perseguir, e alcança a todos os entes federativos da União. Embora episódios cruciais como este decorram – não apenas de escolhas deliberadas pelo governo, mas, – notadamente das interações organizacionais e dos desenlaces políticos, a interpretação que tem prevalecidoiv nas análises que focalizam a RGO parecem restringir-se à primeira perspectiva: a do ator governamental racional e unificado.

Ao se observar as drásticas mudanças no planejamento e na orçamentação pública, assim como as reformas que as conduzem, unicamente pela perspectiva da trilha técnica, parte importante de seu significado é negligenciada. Por mais refinados que pareçam, ou por mais sofisticados que se mostrem os instrumentos analíticos e a lógica inerente aos novos modelos, os avanços e retrocessos do processo orçamentário não se resumem às escolhas de atores pretensamente racionais. Ainda que esse marco de referência habitual seja útil para alguns propósitos, é evidente que ele deve ser complementado por referenciais baseadas em outros fundamentos teóricos, como por exemplo, aquelas cuja atenção está centrada no comportamento das organizações ou, ainda, nos atores políticos envolvidos com a decisão.

2

Afinal, além da racionalidade instrumental, os novos formatos de planejamento e orçamentação refletem também a dinâmica ambiental do poder, as habilidades de liderança (Koven, 1999), a cultura política, o desenho institucional e a capacidade organizacional dos atores e entidades envolvidos no processo de reforma (CHOUDHURY, 2007; GREEN & THOMPSON, 2001; WILDAVSKY, 1992; WILDAVSKY, 1964).

Em vista disso, este artigo dispõe-se a abordar a RGO com base em três diferentes perspectivas: do ator racional (modelo I); do comportamento organizacional (modelo II); e, da política burocrática (modelo III).v Valendo-se do notável esquema conceitual desenvolvido pelos Professores Graham & Zelicow (1999), interpretam-se eventos importantes no episódio da reforma orçamentária brasileira.

A formulação básica de cada modelo será apresentada de modo a considerar: (a) a unidade básica de análise; (b) o marco conceitual; (c) os padrões dominantes de inferência; e, (d) as proposições gerais de cada modelo. Por meio de narrativas históricas e analíticas, pretende-se lançar distintas hipóteses na explicação do episódio. Posto isso, espera-se oferecer interpretações adicionais e úteis (embora incompletas) a respeito de como o governo decide e atua em face de matérias complexas.

A fim de dar maior organicidade e consistência ao exercício analítico constante deste texto, aplica-se, de modo simplificado, a estrutura narrativa sugerida por Barzelay et al.(2001), como apoio a estudos de caso que focalizem reformas na política de gestão pública.

Uma melhor compreensão desta classe de acontecimentos requer que os pesquisadores sejam mais conscientes a respeito das tradições intelectuais que trazem na mente antes mesmo de começar a análise. Aquilo que os analistas vêem e julgam como importante no contexto de um evento é decorrência não somente das evidências que encontram a respeito do sucesso ou do fracasso do episódio, mas também das “lentes conceituais” com as quais eles analisam os eventos que o constitui (ALLISON, 1999).

Em vista disso, defende-se que a RGO não foi apenas uma simples escolha baseada em fundamentos econômicos normativos. Ao contrário, os argumentos apresentados são estruturados com o fito de evidenciar que a decisão reformadora decorreu também das interações organizacionais e, sobretudo, dos desenlaces políticos que resultaram das preferências e identidades dos atores que se encontravam em posição de decidir.

Não obstante as críticasvi que os paradigmas conceituais de Allison atraíram em sua proposição inicial, a revisão do estudo que foi procedida em 1999 superou grande parte das fragilidades apontadas.vii Dentre outras limitações deste texto, destaca-se que a fonte documental e a experiência pessoal dos autores frente à reforma, que serviram de base analítica para o estudo, são bastante restritas, podendo assim ocultar alguns vieses. Todavia, o valor presumido deste artigo não se assenta unicamente na validade de suas conclusões. Acima de tudo, o que se espera oferecer é a ilustração de uma alternativa analítica, que ressalte as vantajosas propriedades que o esquema conceitual de Allison detém. Auxiliado pelo guia metodológico de Barzelay et al. (2001) a intenção deste texto é compartilhar com pesquisadores e analistas de planejamento e orçamentação a existência de outros caminhos de investigação para abordar os complexos fenômenos que habitam o nosso campo de estudos.viii

Além desta introdução, o texto se divide em mais 5 seções. A segunda seção comenta o desenho da pesquisa e propõe uma guia para o seu desenvolvimento. As seções seguintes enunciam os modelos de Allison e os articulam no contexto do mesmo episódio. Por meio de narrativas, elaboram-se as explicações usuais e alternativas. Por fim, concatenam-se as explicações surgidas em cada corte referencial e propõem-se aprofundamentos de pesquisa.

2 Aspectos metodológicos

3

Conforme já evidenciado, esta seção apresenta os delineamentos metodológicos que organizam e conduzem a investigação e a análise. Considerando o duplo objetivo deste texto, qual seja: (a) oferecer interpretações alternativas sobre um mesmo episódio por meio da adição de novos frameworks de análise; e (b) exercitar, parcialmente, a proposta metodológica de estrutura narrativa desenvolvida por Barzelay (2001), elabora-se um diagrama básico do design da pesquisa.

1990................1996................................2000...........................2004................2009

Os modelos I, II e III de Allison (1991) são os frameworks analíticos, e buscam explicar o mesmo episódio a partir de “lentes conceituais” distintas. Já os eventos que o conectam, funcionam como estruturas de organização temporal das narrativas (históricas).

Conforme esclarece Barzelay (2001), o episódio é a ocorrência central, e se constitui por eventos principais, que estão diretamente relacionados à experiência a ser relatada. Eventos antecedentes são ocorrências prévias que auxiliam a explicar o episódio. Eventos contemporâneos referem-se a circunstâncias que ocorreram simultaneamente, contribuindo para o episódio. Eventos relacionados são os que ocorreram simultaneamente, mas que sofreram uma influência importante do episódio. Por fim, eventos conseqüentes são os que ocorreram somente depois do episódio, mas que têm forte relação com ele.

Embora a RGO esteja formalmente situada no ano de 2000, parte importante de sua forma e de seu conteúdo principiou anos antes. Nesse caso, os eventos antecedentes mereceram especial atenção.

Em virtude de naturais limitações de espaço, faz-se uma aplicação simplificada e restrita da metodologia de Barzelay et al. (2001). Por conseguinte, apesar de serem reconhecidos e citados superficialmente, os eventos contemporâneos, relacionados e conseqüentes (que aparecem esmaecidos no diagrama) não serão formalmente desenvolvidos. Essa escolha permitiu uma abordagem mais profunda dos eventos essenciais à explicação do episódio.

3 Modelo do Ator Racional – modelo I de Allison (1999) a) Unidade básica de análise: Políticas públicas são decorrentes de escolhas deliberadas do

governo e objetivam alcançar determinados objetivos (CALMON, 2009). O sucesso e o fracasso de episódios cruciais dependem das opções que o governo exerce. As decisões e as ações governamentais dirigem-se ao encontro de objetivos estrategicamente estabelecidos. Nesse

Eventos antecedentes

EA1. Estabilização da moeda

EA2. Crise de liquidez

internacional

EA3. Adoção de novos padrões de

gerenciamento financeiro

Eventos contemporâneos Reforma do Estado

Eventos relacionados: Desenvolvimento orgânico do Sistema Federal de Orçamento e Planejamento

Episódio a ser explicado Reforma Gerencial do Orçamento (RGO)

Eventos principais EP1. Institucionalização do ajuste fiscal estrutural EP2. Reorientação na lógica do planejamento e da

programação orçamentária

Eventos conseqüentes

EC1. Reformas orçamentárias nos entes subnacionais EC2. Frustração

com os resultados da RGO e emergência

de propostas de uma nova geração de

reformas orçamentárias

4

paradigma, a categoria fundamental da análise é a “solução” que foi adotada para enfrentar o problema.

b) Marco conceitual: O governo é um ator unitário, singular. Com identidade clara, persegue metas explícitas, que derivam de uma função de utilidade consistente (preferências bem comportadas). Antropomorfizado, o governo enxerga o mesmo conjunto de alternativas e tem uma estimativa única das conseqüências que resultam de cada uma delas. O curso de ação tomado é a melhor opção em termos de resposta às oportunidades e ameaças que surgem no seu contexto. Há um nexo causal entre a decisão, a ação e a questão que está sendo tratada.

c) Padrões dominantes de inferência: A escolha do ator é racional porque ela recai sobre a alternativa que maximiza sua preferência. Portanto, a tomada de certas decisões implica que as ações decorrentes são as que produzem as melhores conseqüências para o alcance dos objetivos e metas. Deste modo, o padrão de inferência do modelo I é explicativo, causal e intencional. O enigma é resolvido quando se descobre os propósitos que levaram à ação.

d) Proposições gerais: A explicitação dos termos de análise – suposições, variáveis e relações internas, por exemplo – que regem o modelo do ator racional, enfatiza o desvelo com o rigor lógico das explicações produzidas. O princípio básico da conduta do governo pode ser sintetizado da seguinte forma: a probabilidade de qualquer ação do governo resulta: (1) da combinação de seus valores e objetivos fundamentais; (2) dos cursos alternativos de ação que são considerados; (3) das conseqüências estimadas para cada curso; e, (4) do resultado líquido da apreciação de cada alternativa. Diante disso, se pode deduzir que: (i) a probabilidade de um curso de ação ser escolhido diminui conforme aumentam os custos de sua adoção, isto é, à medida que se reduz seus benefícios ou a certeza de que eles serão alcançados; e, (ii) a probabilidade de um curso de ação ser escolhido aumenta conforme diminuem os custos de sua adoção, ou seja, à medida que se amplia seus benefícios ou a certeza de alcançá-los.

2.1 Narrativas sobre a Reforma Gerencial do Orçamento na perspectiva do modelo I Dentro deste paradigma, a RGO pode ser entendida como uma atitude deliberada

(intencionalidade) do governo (ator monolítico) em resposta às questões (causalidade) que rondavam os ambientes, doméstico e internacional (cognição perfeita da realidade). Dados três eventos antecedentes (EA1, EA2 e EA3), dois eventos principais sintetizam o episódio da RGO: (EP1) institucionalização do ajuste fiscal estrutural e (EP2) Mudanças na lógica do planejamento e da orçamentação.

EA1. Estabilização da moeda: Com a conquista da estabilidade monetária, as contas públicas brasileiras sofreram uma rápida deterioração (GIAMBIAGI, 1999). Isso se deve ao fato de que durante seu período mais agudo, a inflação funcionou como mecanismo de ajuste fiscal. Como as receitas possuíam uma indexação muito melhor do que as despesas, seu valor real era recomposto por meio de correção monetária, enquanto as despesas, que permaneciam com suas dotações nominais, sofriam a corrosão da inflação. Com a estabilidade, os desequilíbrios estruturais do regime fiscal brasileiro tornaram-se patentes.

EA2. Esgotamento do modelo de financiamento do desenvolvimento: Duas condicionantes caracterizam EA2: (1) a crise de liquidez internacional; e, (2) a dificuldade de se ampliarem as receitas públicas. A redução dos fluxos financeiros externosix – que tradicionalmente vinham financiando o desequilíbrio das contas públicas e a impossibilidade de se impor uma pressão tributária adicional sobre a sociedade serviram de agravante do quadro fiscal, exigindo do Brasil a adoção de ajustes mais enérgicos.

EP1. Institucionalização do ajuste fiscal estrutural: A exata percepção das adversidades do panorama econômico externo e interno motivou o País a agir com firmeza, impedindo que déficits excessivos e reiterados levassem à insolvência financeira do Estado. Em 04 de maio de 2000, o Brasil inaugurou um novo tempo para o controle agregado das contas públicas: “A Lei

5

de Responsabilidade Fiscal [LRF] vai mudar a história da administração pública no Brasil” (BRASIL, 2000, p.2).

Conforme prega sua cartilha oficial, a LRF “é importante porque [...] a partir de agora todos os governantes [...] nos três Poderes [...] passarão a obedecer a normas e limites para administrar as finanças, prestando contas sobre quanto e como gastam os recursos da sociedade” (ibid, p. 2). Isso melhora a administração das contas públicas no Brasil, pois quando o setor público gasta sistematicamente mais do que pode, ou induz a volta da inflação, ou se endivida demasiadamente, criando desequilíbrios macroeconômicos que dificultam o desenvolvimento: “então ocorre o seguinte: a taxa de juros sobe, toda a economia sofre, mas o governo cobriu sua conta” (ibid, p. 3). Assim, a LRF “reforça os alicerces do desenvolvimento econômico sustentado, sem inflação para financiar o descontrole de gastos do setor público, sem endividamento excessivo e sem a criação de artifícios para cobrir os buracos de uma má gestão fiscal”.

A LRF, ou Lei Complementar nº101, institucionalizou [...] [..] regras para assegurar a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange à renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em restos a pagar (ibid, p.2).

Assim, o redesenho do regime fiscal brasileiro trouxe como conseqüência o alcance de três objetivos macroeconômicos relacionados entre si, e essenciais à consolidação da estabilidade e à retomada do desenvolvimento: (1) a contenção de pressões especulativas contra a moeda brasileira; (2) a redução da taxa de juros; e, (3) o aumento da poupança interna, especialmente pelo crescimento substancial da poupança pública (BRASIL, 2000).

EA3. Adoção de novos padrões de gerenciamento: Com o controle da inflação e com as contas ajustadas, o País tratou de desenvolver as condições necessárias para aumentar sua capacidade de gestão. Ao perceber a oportunidade favorável, durante a elaboração do plano plurianual (PPA) “Brasil em Ação” (1995), o governo brasileiro incorporou técnicas e ferramentas de gestão típicas do mercado, capazes de tornar sua atuação mais eficiente, eficaz e efetiva. Dentre elas, merecem destaque: o desenvolvimento de sistemas de informações gerenciais, que integravam as diversas bases de dados do governo em tempo real; a designação de “gerentes profissionais” para cada “empreendimento” do plano; a assunção dos pressupostos metodológicos do “project management” como “filosofia de gestão”; os estudos para desenvolvimento regional com base em eixos de integração econômica; e, a “atenção estratégica” baseada em controle do fluxo de recursos e gestão de restrições, dedicada a projetos prioritários (BRASIL, 2002; BARZELAY, 2004). Na síntese de Brasil (2002, p. 8), “A busca de maior eficácia leva à utilização cada vez maior de mecanismos próximos aos de mercado, à introdução de métodos modernos de gestão e à ênfase em recursos baseados na tecnologia da informação.”

EP2. Reorientação na lógica do planejamento e da programação orçamentária: Contando com a experiência exitosa do “Brasil em Ação” (Barzelay, 2004), a reformulação do planejamento e da orçamentação mostrou-se uma alternativa de ação muito oportuna (Brasil, 2000, 2002).

Ao decidir tornar sua atuação mais orientada a resultados, o governo estava consciente da necessidade de controlar a gestão “como um todo”. Era fundamental assegurar uma integração de suas funções básicas: planejamento, orçamento, monitoramento, avaliação e controle dos recursos públicos. Nessa direção, definiu o “problema”, entendido como as demandas não satisfeitas, as carências e as oportunidades identificadas, como a guia na alocação de recursos

6

públicos (BRASIL, 2008). Ao problematizar a realidade, o governo deu ao problema a centralidade na análise de todas as etapas do ciclo da despesa pública (CORE, 2007, p. 249).

Sob a lógica pura das conseqüências (March, 1994), um “programa orçamentáriox” nasce sempre que o governo reconhece um problema. Cabe ao programa papel de articular as iniciativas de enfrentamento ao problema, o qual será aferido por indicadores (GROSSI et al, 2008, p. 31). Portanto, “programação” da despesa se traduzirá por alocar recursos públicos em ações (atividades, projetos e operações especiais) capazes de gerar os produtos necessários ao combate das causas do problema. Por meio de metas (volume de produtos) que concorrem para o objetivo do programa (resolver ou aplacar o problema), as ações orçamentárias do governo alinham a despesa pública à obtenção dos resultados pretendidos.xi Neste sentido, programas e ações tornaram-se o fio condutor de cada uma das fases do ciclo da despesa.

De acordo com o Grupo Técnico Interministerial (apud Garcia, 2000, p. 20): O processo de planejamento compreenderá a elaboração de diagnóstico da situação existente, identificando e selecionando problemas para o enfrentamento prioritário. Serão formuladas estratégias e diretrizes e definidos objetivos a alcançar para cada um dos problemas selecionados, que serão atacados por conjuntos de ações organizadas em programas. Todos os programas indicarão os resultados pretendidos e as ações que os integram terão metas e custos quantificados. Todos os programas terão sua execução monitorada e com resultados avaliados; a avaliação de desempenho passará a ser critério para a alocação de recursos orçamentários em anos seguintes.

Esse “foi o ponto de partida do processo de transformação da administração burocrática em gestão por resultados” (BRASIL, 2002, p. 64). Conforme assinala Brasil (1999, p. 11): “Essas modificações representam [...] a modernização dos processos de planejamento e orçamento, [...] tendo como escopo principal a busca para o setor público de uma administração menos burocrática e mais gerencial, com efetiva orientação para resultados.” Na mesma direção, Garcia (2000) sugere que a intenção das medidas é tornar o planejamento e a orçamentação um processo permanente, obediente a princípios técnicos, tendo em vista o desenvolvimento econômico e social e a contínua melhoria das condições de vida da população.

4 Comportamento organizacional – modelo II de Allison (1999) (a) Unidade básica de análise: Políticas públicas são geradas a partir da interação de

diversas organizações, as quais fazem escolhas específicas (CALMON, 2009). A capacidade organizacional e os produtos gerados por seus programas e repertórios modelam o problema governamental, determinam o fluxo das informações e criam a aparência que a questão terá ao ser apresentada aos decisores. Nesse paradigma, a categoria fundamental da análise do comportamento governamental centra-se “nos produtos, nas capacidades e na posição que cada organização desfruta” em relação ao evento examinado.

(b) Marco conceitual: O governo não é um indivíduo, mas um sistema que percebe os problemas através de sensores organizacionais (CALMON, 2009). Neste modelo o ator governamental se assemelha a uma constelação de organizações, que se entrelaçam frouxamente. No topo de cada organização sentam-se líderes e dirigentes governamentais.

A complexidade dos problemas contemporâneos obriga que o governo os decomponha em muitas partes. A fim de endereçar atenção a cada uma delas, o governo divide-se em numerosas repartições. Cada repartição torna-se uma organização especializada em tratar uma parcela do problema. Conforme se especializam, ampliam a liberdade na definição de repertórios, padrões operativos, produtos e soluções. Assim, cada organização percebe problemas, processa informações e executa ações de forma particular, embora dentro de um marco geral de política nacional.

Em boa medida, as organizações governamentais desenvolvem subjetivamente seus esquemas de autoridade, seus círculos decisórios, seus valores e suas crenças. Nesse sentido, tendem a interpretar ordens e requisições superiores em termos próprios, de acordo com sua cultura,

7

especialmente quando os objetivos impostos oferecem pouca orientação operacional. ‘Cultura organizacional pode ser compreendida aqui como uma síntese de crenças e valores, constituída e reforçada em função de como a organização: constrói o significado de sucesso (em termos operacionais); seleciona as informações de seu interesse; desenvolve seus sistemas especialistas e tecnologias que apóiam suas tarefas; estabelece as normas e os requisitos para recrutamento e progressão de seus profissionais; e, distribui as recompensas obtidas.

O comportamento das organizações governamentais obedece, em geral, a certas características: (1) suas atividades são programadas, desempenhadas a partir de rotinas pré-estabelecidas. (2) as metas e as exigências impostas costumam ser flexíveis e vagas e a organização é julgada com base na adequação às regras e normas formais; (3) a atenção dada aos problemas e a adaptação aos objetivos é seqüencial; (4) a execução confiável das funções críticas depende de processos operacionais padronizados (POPsxii), constituindo programasxiii e repertórios, os quais não podem ser alterados com freqüência ou com facilidade; (5) a incerteza é algo a ser evitado pelas organizações – não por meio de sofisticadas estimativas da distribuição de probabilidade das ocorrências futuras, mas sim pela celebração de alianças e elos negociados que assegurem alguma estabilidade em seus ambientes de atuação; e, por fim, (6) diante de situações que fogem à normalidade, as organizações se engajam na busca de soluções. Todavia, o estilo de busca e implementação da solução sujeita-se aos valores, à cultura, às rotinas e aos padrões operativos.

(c) Padrões dominantes de inferência: Em qualquer ponto específico do tempo “t”, o governo consiste de um conglomerado de organizações. Cada uma tem uma precisa noção de suas tarefas críticas, suas especialidades, suas rotinas, seus programas e seus repertórios. Com efeito, as características da ação governamental em “t” resultam das escolhas que os dirigentes e líderes fizeram “t-1”. Portanto, a capacidade explanatória do modelo de comportamento organizacional reside em analisar as variações temporais de rotinas e repertórios organizacionais.

(d) Proposições gerais: Organizações que possuem alta capacitação e especialização têm maior probabilidade de serem envolvidas quando surgem novas questões críticas para o governo. Entre criar uma nova estrutura organizacional específica ou utilizar as capacidades já instaladas em determinada organização, o governo tende a decidir pela estrutura já existente, adaptando-a com menores custos e riscos.

Em face de casos críticos e extraordinários, que carecem de prévios padrões característicos, a utilização dos POPs pode gerar abordagens aproximativas pouco adequadas. De fato, um programa raramente é desenhado especificamente para a situação que se vai enfrentar. Procedimentos, rotinas programas e repertórios tendem a sofrer mudanças leves. Por conseguinte, novas atividades consistem tipicamente de adaptações marginais baseadas em programas e ações que já faziam parte do repertório organizacional.

Não obstante, em certas ocasiões específicas, aumenta a propensão de mudanças drásticas: (i) em tempos de grande abundância orçamentária; (ii) quando há prolongados períodos de severa restrição orçamentária; (iii) diante de fracassos desmoralizantes de atuação; e, (iv) frente a escândalos dramáticos que envolvem a imagem da organização.

2.1 Narrativas sobre a Reforma Gerencial do Orçamento na perspectiva do modelo II

Com base nesta lente conceitual, o episódio da reforma orçamentária deve ser visto como produto das organizações que o conceberam e implantaram. Note-se, ainda, que processos de alterações drásticas na política de gestão pública são casos específicos de mudança e aprendizagem organizacional. De acordo com o modelo II, tendem a ocorrer em períodos de grandes cortes orçamentários ou grandes falhas (ALLISON, 1999).

EA1. Estabilização da moeda: Durante o período de alta inflação, o papel das unidades de planejamento e de orçamentação era atrofiado e obtuso. A expressão “o orçamento é uma mera

8

peça de ficção” resume bem esta realidade. À medida que despesas públicas se depreciavam livremente frente às receitas indexadas, os planos e os orçamentos dissociavam-se da realidade (produtos coordenados pelas Secretarias de Planejamento e Investimentos Estratégicos – SPI e de Orçamento Federal – SOF, respectivamente) sofrendo forte desmoralização. As dotações iniciais, que resultavam do extenuante processo de elaboração orçamentária, eram irrelevantes. “O que valia era a ‘luta’ por recursos durante a execução” (GROSSI et al., 2008, p.89). Afinal, como destaca Barzelay (2004, p. 27) “em ambientes de inflação descontrolada ninguém consegue planejar nada a respeito de coisa nenhuma [...]”.

Por conseguinte, as organizações que integravam o sistema orçamentário eram obrigadas a despender, quase que inutilmente, uma grande quantidade de energia e tempo apenas para ajustar formalmente a peça orçamentária. A concentração de rotinas operativas nesse tipo de esforço suprimia, em grande medida, a oportunidade de se dedicar a assuntos estratégicos. Embora Bendor & Hammond (1992, p. 312)xiv sejam mais otimistas quanto à capacidade de processamento das organizações, há evidências de que durante a inflação alta, a capacidade de atenção dos órgãos de coordenação do sistema de planejamento e orçamento ficava severamente restringida, (os autores valem-se de testemunhos, colhidos informalmente, de analistas sêniors que experimentaram o fenômeno em suas organizações).

Com o controle do processo inflacionário, as organizações responsáveis pelas atividades de planejamento e orçamento, bem como as suas rotinas, programas e repertórios, ganharam novos significados. Com essa conquista, as unidades setoriais de despesa passaram a se engajar intensamente nas disputas orçamentárias, re-valorizando o papel do órgão central e o processo da orçamentação que este coordena. “À medida que subitamente a inflação foi controlada, na corrida para a eleição de Cardoso em outubro de 1994, as grandes questões sobre o Estado e o desenvolvimento voltaram à tona” (BARZELAY, 2004, p. 7). Um dos reflexos disso foi que, em 1995, a então Secretaria de Planejamento, Orçamento e Coordenação da Presidência da República (SEPLAN) foi alçada à condição de Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO).

EA2. Reorientação na lógica do planejamento e da programação orçamentária: A crise de liquidez internacional e as dificuldades na obtenção dos recursos fiscais repercutiram negativamente sobre as pretensões de gasto de todos os órgãos da atuação governamental. Contudo, em nenhum deles esse evento fora visto de modo tão ameaçador quanto o fora para SPI, pois essa restrição representava uma grave intimidação à grandeza do PPA, seu principal produto. Era preciso “encontrar outros mecanismos de financiamento e modelos alternativos de viabilização de investimentos para ampliar a oferta de serviços de interesse público à sociedade” (BRASIL, 2002, p.62).

Embora não se tratasse de nenhuma circunstância ordinária, cujos repertórios prévios pudessem manejar prontamente tal realidade, a SPI foi capaz de endereçar algumas soluções a esse caso. Adaptando e aprofundando experiências vivenciadas anteriormente, a Secretaria criou um sentido particular à crise, idealizando cenários e formas de investimentos que a auxiliassem a manter a confiança no futuro. Servem de ilustração a isso as iniciativas de captação de recursos privados, bem representadas pela divulgação dos sítios multilíngües www.infraestruturabrasil.gov.br, e www.investebrasil.org.br, do Comunicado de Brasília (disponível em www.iirsa.org) e do modelo de alocação estratégica de recursos.

Calmon (2009) esclarece que diante de novos problemas e ameaças, as organizações dividem o problema em diferentes componentes e tentam lidar com esses problemas a partir das suas missões, objetivos operacionais, capacidades e da cultura organizacional existente. Em mensagem presidencial, comentando o programa “Gestão Empreendedora para o Desenvolvimento” do PPA 2000/2003, cujo gerente era um reconhecido Executivo Sênior da SPI ficou registrado:

9

A viabilização do projeto de desenvolvimento nacional está apoiada no investimento privado. A participação da iniciativa privada na construção da infra-estrutura econômica tem sido crescente nos últimos anos, principalmente nos setores de comunicação e energia. Essa participação, entretanto, precisa ser ampliada para ajudar a suprir as imensas lacunas de infra-estrutura necessárias para integrar o País e aumentar a competitividade da economia. A importância que o Governo vem dando a essa questão, levou à criação, em novembro de 2000, em parceria com 42 entidades empresariais, da Rede Brasileira de Promoção de Investimentos. Investe Brasil, instituição voltada para a atração de investimentos diretos internacionais e nacionais para o desenvolvimento do País (BRASIL, 2001, p2).

Muito se debateu sobre a adequação e aderência à realidade das soluções de financiamento propostas (as parcerias público-privadas nunca saíram do papel ou do imaginário organizacional. Todavia, pouco se tem comentado que o modelo de financiamento que foi proposto refletia apenas uma parte das rotinas, das capacidades, dos interesses e das tradições culturais que convivem nas diversas organizações governamentais. As propostas (inovações) encabeçadas pela Secretaria não contavam com o apoio de todos os envolvidos nesta questão e talvez nem espelhassem, honestamente, as possibilidades do País. Contudo elas asseguraram por bom tempo a atenção e grandiloqüência do Plano cuja construção ela liderou.

EP1. Institucionalização do ajuste fiscal estrutural: Dentro do modelo II, a LRF pode ser vista como um indiscutível caso de isomorfismo organizacional. Trata-se de uma clara adaptação do Fiscal Responsability Act, instituído no âmbito da Nova Zelândia em 1994, especialmente quanto aos estímulos para ampliar o accountability das contas.

Todavia, a estrutura da norma brasileira criou seu mix próprio, misturando incentivos de várias naturezas (o que não deixa de ser um exemplo de inovação marginal). Resultado de múltiplas interações, a LRF miscigenou variadas posições que as organizações envolvidas em sua elaboração defendiam (notadamente, nas estruturas de fazenda e planejamento federal, no Congresso Nacional e também nalguns entes federados de peso). Segundo a classificação proposta por ALESINA & PEROTTI (1995), diz-se que as instituições fiscais refletidas na LRF combinam regras numéricas, de procedimento e de transparência.

Apesar do regime federativo, a imposição das regras fiscais no Brasil deu-se centralmente e não coordenadamente, como ocorreu na União Européia, por exemplo. Tentando romper com nosso path dependence fiscal, o estilo de enforcement preferido pelas organizações “guardiãs” foi o da imposição formal. Ao optar por fixar em lei complementar as regras de procedimento, tais como o sequestration e o pay-as-you-go, as organizações responsáveis pela política macroeconômica assumiram que a rigidez na definição das restrições orçamentárias, ainda que subótima, é preferível às idiossincrasias das organizações governamentais.

A presunção era de que a LRF iria “mudar a história da administração pública no Brasil. Através dela, todos os governantes passarão a obedecer a normas e limites para administrar as finanças, prestando contas sobre quanto e como gastam os recursos da sociedade” (BRASIL, 2000). Porém, desde que posta em marcha, não são raros os casos em que esta tem sido flexibilizada e reinterpretada criativamente, de acordo com conveniências locais ou momentâneas. De certo modo, isso indica que a “lógica da adequação” às regras informais também preside a governança fiscal, especialmente na esfera de estados e municípios.

EA3. Adoção de novos padrões de gerenciamento: Frente ao desafio de elaborar um novo PPA para o quadriênio 1996/1999, a SPI parecia especialmente preocupada em alcançar melhores resultados no seu gerenciamento. Muitos dos projetos que o passariam a constituir exigiam ações constantes por parte de mais de um ministério, uma ou mais empresas estatais ou, ainda, um ou mais ente sub-nacional. Em termos de fluxos de informação, as organizações setoriais (órgãos e unidades orçamentárias) operavam de maneira compartimentada. O cumprimento de prazos, portanto, era algo que a experiência recente da Secretaria mostrava improvável. A coordenação era, de fato, uma tarefa realmente árdua.

10

Adicionalmente, o quadro fiscal brasileiro continuava a ser uma fonte importante de embaraços aos interesses da SPI. Por outro lado, a SOF e a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que tradicionalmente executam rotinas voltadas ao controle agregado do teto de gastos, pareciam mais alinhadas e adaptadas às restrições fiscais (há importantes interfaces operacionais e de valores que essas duas organizações conjugam ao cumprir a missão de gestão fiscal da despesa). O cronograma e o volume dos desembolsos para a execução das despesas dependiam da interpretação que essas duas organizações faziam acerca do comportamento de variáveis como as receitas correntes, as despesas obrigatórias e as taxas de juros e câmbio, por exemplo. A incerteza quanto aos desembolsos gerada por tais fatores exacerbava os problemas de coordenação e tendia a causar atrasos. Isso, sem dúvida, era um grande obstáculo à reputação do Plano e sua principal protagonista.

Nas palavras de Kandir (apud, Barzelay, 2004, p. 10): “Os recursos disponíveis para o setor público eram não apenas escassos, mas também extremamente variáveis. O que é verdadeiramente preocupante para um projeto é não se ter certeza de que avançará por todos os seus estágios [...].” Em vista disso, a SPI produziu uma série de esforços articulados, os quais podem ser sintetizados como segue:

Para cada empreendimento, foram definidos objetivos e metas a serem atingidas, programação física e financeira, além de controle de custos, prazos e qualidade. Foi designado um gerente, responsável pelo alcance das metas. Ao gerente coube a tarefa de organizar ações em várias áreas, mobilizar recursos, promover parcerias e superar obstáculos para a consecução dos objetivos. Um sistema de informações gerenciais interligava, em tempo real, dirigentes, gerentes e parceiros, permitindo o acesso imediato às informações sobre todos os empreendimentos. O foco principal do sistema estava no monitoramento físico-financeiro e no compartilhamento de informações sobre restrições e providencias, para facilitar o encaminhamento de soluções, sem burocracia (BRASIL, 2000, p. 17).

Conforme relatou Kandir (ex-ministro de Planejamento), em entrevista concedida à Barzelay: “Desde o início do mandato de Cardoso como presidente, a Secretaria de Planejamento [SPI] estava transbordando de idéias, muitas das quais diziam respeito à elaboração de uma forma adequada de planejamento do desenvolvimento, no âmbito do governo federal” (BARZELAY, 2004, p. 8). “[A SPI] tinha que ser uma secretaria que tomasse posição quanto a questões importantes, propusesse ações e interagisse vigorosamente com os ministérios setoriais”, arrematou Marcondes (2003, apud BARZELAY, 2004).

A SOF, por outro lado, fundada em princípios mais conservadores, parecia preferir práticas tradicionais, testadas e seguras, como a divulgação de limites orçamentários por órgão (e não por programa) e as estimativas de tetos orçamentários com base em ajustes incrementais (a partir de alinhamentos da série histórica: t = t-1, expurgadas as despesas eventuais e adicionadas despesas extraordinárias no presente período, multiplicada/dividida por algum fator incremental/decremental). Conforme registra o MTO-02 (1999, p.10):

No que diz respeito ao desenvolvimento de metodologias de análise, com o objetivo primordial de aprimoramento na alocação dos recursos públicos, foram estruturadas, no âmbito interno da SOF, sistemáticas voltadas para a análise de séries históricas; estimativas de execução; projeção de valores orçamentários de receitas e despesas, para fins de fixação de limites, bem como para avaliação das proposições originadas dos órgãos setoriais.

EP2. Reorientação na lógica do planejamento e da programação orçamentária: A concepção de RGO se valeu amplamente de padrões de gerenciamento concebidos ainda no bojo do Brasil em Ação (1995/1999). Mas foi a cultura organizacional que permitiu que o episódio irrompesse da forma como irrompeu. Os padrões de gerenciamento que foram concebidos não resultaram simplesmente das supostas “adequadas propriedades administrativas” que as ferramentas detinham. Acima de tudo, tais padrões são fruto da identidade que a organização evocava ao olhar para o futuro.

11

É preciso considerar que até as vésperas da RGO a estrutura da SPI ainda era bastante enxuta, contando com cerca de 40 colaboradores, sendo que até o ano de 1998 não havia na Secretaria nenhum integrante da recém-criada carreira de Analista de Planejamento e Orçamento (APO).

A fim de moldar a identidade organizacional e ampliar as condições de sobrevivência organizacional, a Secretaria defendeu mudanças no modelo de formação de pessoal em Planejamento e Orçamento, que foram implantadas entre 1998 e 1999. “Até 1997, o treinamento oferecido aos profissionais aprovados em concurso público tinha um caráter ‘informativo’, com ênfase nas questões relativas ao Orçamento. A partir de março de 1998, a ‘filosofia’ do curso mudou. O treinamento foi ampliado, passando a abranger as áreas de ‘Planejamento, Finanças Públicas e Reforma do Estado’. O objetivo foi oferecer aos alunos uma ‘formação mais abrangente’, de modo a torná-los ‘agentes de transformação da administração pública’. Em 1999, o curso incluiu módulos relacionados com a ‘Economia do Setor Público’ e a ‘Gestão Empreendedora’, ‘para ampliar os horizontes da carreira’ (BRASIL, 2002, p.18, grifo dos autores). Com isso, a SPI passou a contar com um quadro técnico permanente nessa área, capaz de preservar, aprofundar e difundir o conhecimento gerado ao longo dos últimos anos

Como se observa por esse exemplo, a Secretaria preparava um terreno propício às crenças e valores que ela buscava cultivar e reforçar. “A idéia básica é que os esforços dos atores eram influenciados pelas identidades que eles para si evocavam como gestores públicos orientados para resultados, sobre cujos ombros recaíam a responsabilidade de fazer o Brasil em Ação funcionar” (BARZELAY, 2004, p. 26).

As praticas de gerenciamento corporativo, que a Secretaria defendia com vigor, moldavam um discurso que se harmonizava com a realidade enfrentada. Interessada no sucesso das parceiras entre o setor público e os financiadores privados, a SPI dispôs-se a falar uma nova linguagem: “era preciso conquistar a confiança do cliente” e “vestir o traje apropriado”. A nova retórica passava longe de tudo que lembrasse as alegorias “políticas”, para ficar bem mais próxima do gerenciamento científico de “portfólios” e “empreendimentos”. Assim, o mimetismo organizacional ajudava a galvanizar os signos e símbolos que passaria a estampar em seus produtos.

5 Política burocrática – modelo III de Allison (1999)

(a) Unidade básica de análise: Políticas públicas são geradas a partir de atores influentes, de líderes ou dirigentes que ocupam cargos importantes ou estão em posição de decidir (CALMON, 2009). Assim, o comportamento do governo resulta de jogos intrincados e sutis, simultâneos e sobrepostos, estruturados por canais reguladores e restritos pela força dos deadlines que se impõem em cada questão. Nesse paradigma, a categoria fundamental da análise dos movimentos e dos jogos da política burocrática “é a capacidade e a reputação que o líder detém” para articular todos os atores necessários ao acontecimento da ação.

(b) Marco conceitual: Dirigentes e líderes no governo não formam um grupo monolítico, pois possuem identidades, preferências, objetivos e interpretações heterogêneas, filtrando temas, soluções e oportunidades para decisão (CALMON, 2009). Outros atores, como grupos de interesse, burocracia, imprensa e público em geral, por exemplo, podem formar círculos concêntricos que se instalam ao redor da arena central, demarcando os limites dentro dos quais o jogo acontece.

As posições ocupadas delineiam papéis, indicando a atuação que os jogadores podem e devem ter. As vantagens e as desvantagens que cada ator usufrui ou sofre em cada arena são dadas, em boa medida, pelas posições que ocupam. No entanto, não é possível participar apenas de arenas em que a posição é vantajosa. É preciso jogar todos os jogos que cabem ao posto, de forma que os resultados colhidos em cada um deles afetarão o prestígio e o poder com que o jogador conta para entrar nas próximas arenas.

12

Porém, uma vez que os jogadores são entes humanos, seus processos metabólicos também interferem no desfecho de seus empreendimentos. Logo, a resolução de cada jogo não depende unicamente da posição dos jogadores, mas também da personalidade, do estilo e do carisma que cada jogador é capaz de cultivar.

Em vista disso, a feição que cada jogador demonstra em face das circunstâncias que enfrenta, a forma como lida com a pressão, o modo como trabalha a complementaridade e o conflito dos interesses de outros atores em posição são componentes cruciais para a definição dos resultados em cada círculo decisório. Ademais, deve-se considerar que cada pessoa chega ao posto com sua “bagagem cultural” particular, com sua sensibilidade específica no que toca cada questão, com seus próprios compromissos programáticos, com sua atitude e sua visão individual a respeito dos grupos e setores sociais com quem se relaciona.

A resposta às indagações “qual é o problema?” e “o que deve ser feito?” tem matizes que variam segundo a posição daquele que as considera. Respostas às situações críticas não surgem de analistas distantes, que examinam friamente a circunstância. Ao contrário, o enquadramento do problema principal obedece às peculiaridades do canal por onde surge a atenção e também à urgência que os deadlines impõem aos jogos.

A influência sobre as decisões e ações governamentais (“poder”) está relacionada a uma obscura mescla de ao menos três elementos: (1) vantagens na negociação; (2) vontade e habilidade para exercer essas vantagens; e, (3) percepção dos demais jogadores quanto aos dois elementos anteriores. As vantagens e a habilidade de exercê-las na negociação podem ser derivadas (i) da autoridade e da responsabilidade formais da posição; (ii) do controle sobre os recursos necessários à execução da ação; (iii) da expertise e controle sobre a informação que permite moldar o aspecto do problema, identificar as alternativas e julgar suas viabilidades; (iv) da habilidade de afetar os objetivos e preferências de outros jogadores que atuam em outros jogos; (v) da capacidade de persuadir os demais jogadores (derivada da personalidade, do estilo e do carisma pessoal); e, (vi) do acesso aos demais jogadores que têm vantagens de negociação. Quando essa influência é exercida de forma bem-sucedida, ela outorga boa reputação ao jogador. Por outro lado, tentativas desafortunadas de influir produzem um desgaste no “capital político” do jogador, que assiste a uma queda nas suas reservas de poder.

Jogos de negociação não se dão no vácuo ou de maneira aleatória. Os indivíduos mais importantes são os jogadores cujas posições e movimentos os mantêm junto aos canais de ação. Canais de ação representam meios regulares e reconhecidos para atuar sobre questões específicas. Esses canais estruturam os jogos pré-selecionando os jogadores mais influentes, definindo pontos de entrada usuais e distribuindo determinadas vantagens e desvantagens para cada jogo. Mais claramente, definem “quem está com a bola agora, quem esteve antes e quem estará depois

Disposições constitucionais e legais, os estatutos profissionais e organizacionais, as interpretações das cortes judiciárias, as ordens executivas, as convenções e os costumes culturais são as fontes que definem as regras que pautam o jogo e seus canais de ação. Algumas dessas regras são explícitas, outras não – algumas são claras, outras confusas. Se alguns dos regramentos permanecem estáveis por longos períodos, outros podem sujeitar-se a alterações reiteradas. De fato, esse conjunto institucional restringe o jogo. Primeiramente, são as regras que definem as posições, os caminhos que se deve trilhar para ter acesso a elas e o modo como os postos se prendem aos canais de ação. Em vista disso, as regras comprimem o espaço de aceitação da decisão e da ação governamental. Por fim, as regras podem incentivar certos movimentos tais como barganhas, coalizões, persuasão, engodo, blefes, ameaças ou, atribuir-lhes sanções que os tornam ilegais, imorais, desonestos ou inapropriados.

As decisões e ações do governo não resultam, portanto, da simples escolha calculada de um grupo unificado, e nem do sumário das preferências dos dirigentes e líderes organizacionais.

13

Com efeito, no contexto de poder compartilhado (onde cada participante tem um juízo próprio e distinto no que tange à importância das questões e à forma adequada de abordá-las) a política torna-se o mecanismo de decisão.

Aquele jogador que hesita diante de uma questão perde a chance de jogar e aquele que está inseguro sobre sua posição será superado por outro que demonstre sua convicção. Isso impele os jogadores ao jogo, fazendo com que se posicionem mesmo em face de questões controversas. O impacto nos resultados como medida imediata de performance encoraja a rudeza do jogo. A “paixão” pelo trabalho e pela posição leva os jogadores a se enfrentarem duramente no intuito de assegurar que o “governo faça a coisa certa”.

(c) Padrões dominantes de inferência: O poder explanatório do Modelo III é obtido pela revelação do jogo – dos canais de ação, dos atores, das posições, das identidades e das preferências dos vários jogadores que se dividem na atenção do problema central.

(d) Proposições gerais: A ação não pressupõe a intenção. Seria algo muito surpreendente a constatação de que a soma das condutas de representantes do governo, em face de determinada questão, fosse exatamente o resultado da ação de um indivíduo ou organização em particular. É muito mais provável que jogadores isolados, com intenções e culturas diferentes, aportem elementos que se combinarão na configuração de um resultado distinto daquele que cada um havia pretendido singularmente. Portanto, a resultante tende a ser apenas parcialmente consistente com as preferências dos jogadores individuais ou organizacionais.

As demandas sobre o presidente, chefes, staff e burocratas de menor relevo possuem distinções importantes. Quanto maior a relevância do jogador, mais cheia é sua agenda. O ritmo seguido pelos múltiplos jogos permite apenas uma atenção limitada sobre cada jogo, requerendo uma concentração sobre os jogos mais importantes. Isso obriga os jogadores a ordenarem serialmente sua atenção, considerando a urgência dos deadlines e a importância das questões que mais o afetam.

A identidade, as preferências, a personalidade, o estilo, a cultura e diversas exigências impostas pela posição política e organizacional de cada jogador moldam seu papel, suas prioridades e suas questões de interesse. Contudo, as vantagens e as desvantagens de um jogador diferem substancialmente de um canal de ação para outro, e variam dentro do mesmo canal ao longo do caminho entre a decisão e a ação finalizada.

2.1 A Reforma Gerencial dos Orçamentos na perspectiva do modelo III

Pela lente do modelo III de Allison, os jogadores em posição de decidir determinam, politicamente, o desenlace do jogo. Contando com

EA1. Estabilização da moeda O controle da inflação no Brasil trouxe impactos eleitorais indiscutíveis. Cardoso elegeu-se

com apoio suficiente para dar início a diversas pautas de sua agenda. Todavia, Cardoso sabia o quanto de sua reputação era devido a essa conquista. O medo coletivo da volta das altas taxas inflacionárias e o receio de um conseqüente desgoverno fizeram da estabilidade uma espécie de valor societário. O teor da mensagem que enunciava os objetivos de seu primeiro PPA 1996-1999 serve de ilustração:

Em primeiro lugar, trata-se de consolidar o Real, isto é, tornar permanentes as condições de estabilidade monetária. Isso implica dar continuidade às alterações constitucionais e legais dos sistemas tributário e previdenciário, de modo a obter um equilíbrio mais estável das contas públicas. Implica a continuidade e o aprofundamento do programa de desestatização, inclusive a generalização da concessão de serviços públicos ao setor privado. Exige, além disso, política monetária e cambial compatíveis tanto com a estabilidade de preços quanto com o necessário crescimento da taxa de investimentos.

14

Destarte, as expectativas populares quanto à estabilidade, ao mesmo tempo em que ampliavam o suporte ao jogo do Presidente, retiravam dele a chance de liderar qualquer projeto honesto de fortalecimento da capacidade do Estado.

EP1. Institucionalização do ajuste fiscal estrutural: Nos modelos I e II, a leitura da vertente fiscal da RGO pressupõe que o desenvolvimento é um problema técnico, a ser resolvido por meio de incentivos que corrijam as distorções do mercado político. Todavia, “as instituições e os processo não são neutros ou meramente instrumentais. Eles são o cadinho em que as políticas são forjadas e moldadas, e adquirirem a sua verdadeira forma e significado” (BID, 2007, p. 254).

A LRF, como desenlace político protagonizado pelo Presidente Cardoso, é uma resultante intrigante. Cardoso, político-intelectual de esquerda, desde os anos 60, sempre procurou entender o Brasil e a América Latina a partir de suas especificidades. Num movimento repentino, admitiu trasladar regras fiscais (de outro jogo) como se fossem singelas commodities a se empilhar no corner do tabuleiro.

Mas, um ajuste fiscal como esse não se deu apenas pela graça de sua liderança. Uma Lei Complementar da monta da LRF exigiu apoio qualificado no Congresso e muita simpatia por parte do Supremo (a quem coube julgar as alegações de inconstitucionalidade dessa matéria). Sabe-se do jogo pesado que foi jogado ao redor da arena parlamentar. Representantes localistas se viam ameaçados pela possibilidade de verem suas bases eleitorais atadas pela “camisa de força” da lei fiscal. A totalidade e a natureza dos incentivos que garantiram a sustentabilidade da coalizão vencedora não estão bem claras até hoje, assim como as implicações sociais desta decisão.

A inspiração em modelos de sucesso pode ser um grande estímulo às mudanças institucionais, mas a história tem advertido sobre os perigos de se conceber tais mudanças com base em esquemas ideais (Scott, xxxx) ou melhores práticas (Bardach, xxxx) sem que se leve em conta as condições subjacentes, as peculiaridades locais e espaços para sua adaptação.

EA3. e EP2. Adoção de novos padrões de gerenciamento e Reorientação na lógica do planejamento e da programação orçamentária:

O argumento proposto para explicar os eventos EA3 e EP2 é idêntico. Fundam-se na mesma suposição. Vestígios, profundos e sutis, da trilha que leva ao episódio, sugerem que a identidade, a experiência e a reputação do líder-dirigente foram cruciais para que as propostas de mudança na política de gestão do plano e do orçamento alcançassem o canal que leva ao Presidente. O tema ganhou a atenção que precisava.

A assunção dos valores da austeridade, controle e contenção, pelo Presidente, deixou pouco espaço para a discussão do projeto de fortalecimento dos instrumentos de planejamento e orçamento. Todavia, logo após um ano de mandato, o Presidente reconhecera que sua agenda de políticas públicas era percebida como algo pouco além de manter a estabilidade macroeconômica. Era preciso mudar isso e o PPA “Brasil em Ação” exerceu papel preponderante na realização dessa intenção.

“A idéia era de que Cardoso deveria ser identificado com uma agenda de desenvolvimento construída em torno da implementação de projetos prioritários” (BARZELAY, 2004, p.5). Dada a necessidade de atrair a confiança dos capitais privados no financiamento do desenvolvimento nacional, o perfil e as competências requeridas na liderança deste projeto tornaram-se claros.

Dentre as lideranças executivas que conduziram esse projeto político, José Paulo Silveira foi quem mais se destacou, refletindo sua identidade e experiência por todo o processo. Antes de assumir a condução da SPI, à convite do então Ministro do Planejamento e Orçamento, Antônio Kandir, Silveira dirigiu o Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade, que envolvendo milhares de empresas que estavam tentando se adaptar à rápida liberalização comercial do país.

15

Nessa função, Silveira ampliou sua reputação como líder altamente habilitado de importantes empreendimentos sob a forma de projetos, adquirida anteriormente enquanto trabalhava na principal estatal do ramo do petróleo (BARZELAY, 2004).

No decorrer de sua longa carreira na Petrobras, Silveira havia reestruturado os sistemas de compras da companhia, dirigido o departamento de pesquisa e desenvolvimento quando a empresa estava estudando como perfurar em alto-mar em profundidades sem precedentes e chefiado a unidade de planejamento estratégico quando a empresa estatal estava se preparando para o fim de seu monopólio legal no setor.

Silveira sentia-se atraído pelo “desafio fantástico” de “transformar um estilo burocrático de gestão num estilo de gestão orientado para resultados, isto é, para a introdução de um caráter empreendedor na administração pública”. Ele achava que os princípios de gestão de projetos poderiam ser aplicados em todo o governo federal, fazendo do Brasil em Ação uma experiência piloto. (BARZELAY, 2004).

Silveira apresentou pessoalmente seu projeto de estruturação do Plano para o Presidente que, antes mesmo de encerrada a exposição, acenou com sua concordância plena aos propósitos de Silveira.

No texto em que o Prof. Barzelay (2004) examina o caso brasileiro na improvisação de práticas de planejamento centrado em projeto, o nome de Silveira aparece 37 vezes, enquanto que o nome do Presidente foi referido 28 vezes.

Nas palavras de seu diretor de Investimentos Estratégicos: “Ele era a representação máxima do que queríamos ver num gerente”. Nas palavras do próprio Silveira: “a chave desse processo não é técnica, é uma nova atitude e postura: a do caráter empreendedor. Essa é a essência da mudança gerencial” (BARZELAY, 2004). CONCLUSÕES

O objetivo desse trabalho foi elaborar um estudo de caso sobre o processo decisório relativo à Reforma Gerencial do Orçamento (RGO). Trata-se, portanto, de uma primeira aproximação na tentativa de entender a dinâmica orçamentária brasileira a partir de uma perspectiva não tradicional. A prática mais comum nas análises sobre o processo orçamentário no Brasil tem sido estudar o orçamento como instrumento de política fiscal ou como elemento que mitiga ou não o conflito distributivo entre atores governamentais ou não governamentais. Essas análises têm seus problemas e seus méritos. No entanto, o objetivo aqui foi diferente. Objetivando ampliar o campo de estudos sobre orçamento, o foco desse estudo de caso foi considerar o processo orçamentário como um processo decisório e, para tanto, examinar o processo a partir de uma ótica multivariada e multiparadigmática.

A opção pelo estudo do processo orçamentário como processo decisório parte da constatação que as análises realizadas até o momento tendem a compartilhar um mesmo pressuposto limitante: a predominância da “lógica das conseqüências” nas decisões orçamentárias (March (1994). Mesmo os estudos que privilegiam a dinâmica das relações intergovernamentais do orçamento, como é o caso dos trabalhos de Figueiredo e Limongi (2002) e Pereira e Mueller (2003), o fazem a partir dessa perspectiva. No entanto, as análises baseadas na lógica das conseqüências demandam serem complementadas por análises que contemple também perspectivas centradas na “lógica da adequação” (“logic of appropriateness”). O objetivo desse estudo de caso também foi propor uma análise que pudesse compreender o processo orçamentário a partir dessas duas óticas.

Com esse intuito, foram adotadas duas estratégias simultâneas. Do ponto de vista conceitual, o estudo de caso fundamentou-se no arcabouço proposto por Allison (1999), conhecido como os 3 Modelos: o modelo do ator racional (Modelo I), o modelo do comportamento organizacional (Modelo II) e o modelo da política burocrática (Modelo III). Do ponto de vista metodológico, o

16

estudo de caso foi organizado a partir da estrutura narrativa proposta por Barzelay (2001), em que o episódio sendo estudado é examinado de maneira temporal a partir da identificação de quatro conjuntos de eventos: (i) antecedentes, (ii) contemporâneos, (iii) relacionados, e (iv) conseqüentes.

A utilização dessa estratégia para análise do caso gerou algumas conseqüências importantes. Primeiramente, foi possível perceber que o quadro conceitual proposto por Allison (1999) fornece elementos que permitem uma análise interessante e bastante rica do episódio. Em outras palavras, o quadro conceitual parece “aderir” bem ao episódio, na medida em que ele permite identificar relações entre as variáveis e distinguir relações que não são evidentes a primeira vista. Consequentemente evidencia-se que a utilização dos três modelos permite uma percepção mais ampla e comparada do processo decisório e fornece uma perspectiva alternativa para as análises mais tradicionais sobre o processo.

Espera-se que essa primeira tentativa de analisar o processo orçamentário como processo decisório dentro de uma ótica mais ampla que combine a lógica das conseqüências como a lógica da adequação, estimule a realização de novos trabalhos e que isso nos permita uma compreensão mais ampla e mais completa dos processos decisórios no setor público brasileiro.

REFERENCIAS ALESINA, A. & PEROTTI, R. (1995). “The Political Economy of Budget Deficits”. IMF staff papers, March 1-32. Allison, Graham and Zelikow, Phillip (1999). Essence of Decision: Explaining the Cuban Missile Crisis, 2ed. Longman. Bendor and Hammond. 1992. Rethinking Allison's models. American Political Science Review 86 (June): 301-22. Barzelay, M., Gaetani, F., Cortázar Velarde, J. C., and Cejudo, G., 2001. "Research On Public Management Policy Change In The Latin America Region: A Conceptual Framework And Methodological Guide". International Public Management Review, 3, 1: 20-42 Barzelay, Michael e Evgeniya Shvets (2004), “Improvising the Practices of Project-Centred Strategic Planning and Delivery: the Case of ‘Brazil in Action’". Paper apresentado à “Conference on Generation Reform in Brazil and Other Nations”, organizada por IPMN – International Public Management Network e EBAPE – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 17 a 19 de novembro de 2004; 32p. BID Banco Interamericano de Desenvolvimento. A Política das Políticas Públicas: relatório de progresso econômico e social na América Latina. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Manual Técnico de Orçamento – MTO-02. Brasília, 1999. ______. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos. Cartilha de orientação sobre a lei de responsabilidade fiscal. Brasília, 2000. ______.Presidente (2001b: F.H. Cardoso) Mensagem ao Congresso Nacional. Brasília: Presidência da República: 2001. <disponível em http://www.planalto.gov.br/publi_04/colecao/capn01.pdf> Acesso em 08/04/2009. ______. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos. O desafio do planejamento governamental. Brasília, 2002. CALMON, Paulo C. Du Pin. Notas de aula sobre políticas públicas. UnB. Brasília.2009. CHOUDHURY, Enamul. Budgeting as an Institutional Practice: Modeling Decision Making in the Budget Process. 2007. In: GÖKTUĞ MORÇÖL (Org). Handbook of decision making New York: CRC Press. p. 417-432. CORE, F. G. Reforma Gerencial dos Processos de Planejamento e Orçamento. 2001. In: FIGUEIREDO, A. e LIMONGI, F(2002), “Incentivos Eleitorais, Partidos e Política Orçamentária”. Rio de Janeiro DADOS – Revista de Ciências Sociais, vol. 45, no2, pp. 303-344. GIACOMONI. J. PAGNUSSAT. J. L. (Org.). Planejamento e orçamento governamental. Brasília: ENAP, 2006. v. 2, p. 219-261. GARCIA, R. (2000) A Reorganização do Processo de Planejamento do Governo Federal: O PPA 2000-2003, IPEA, TEXTO PARA DISCUSSÃO NO 726, Brasília. GIAMBIAGI, Fábio; ALEM, Ana Claudia. . Finanças Públicas: Teoria e Prática no Brasil. 3a. ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2007. GREEN, Mark T. and Fred Thompson. 2001. "Organizational Process Models of Budgeting." In J. Barlte (ed.), Evolving Theories of Public Budgeting, (New York: JAI Press). GROSSI, Bruno C. . Orçamento público: elaboração e execução. Brasília, 2008. Jones, L. R. (1996). Wildavsky on budget reform. Policy Sciences, 29, pp 227-234. KELLY, Janet M., “A Century of Public Budgeting Reform: The Key Question”, Administration&Society, Vol:37, No:1, March 2005. KOVEN. Steven G. Public budgeting in the United States : the cultural and ideological setting. Washington, D.C. : Georgetown University Press, 1999.

17

Lee, Robert D, Ronald W Johnson, and Philip G Joyce. Public Budgeting Systems. 8 ed. Boston: Jones and Bartlett Publishers, 2008. Nice, David, C., Public Budgeting, Wadsworth Publishing, 2001, first edition. PEREIRA, C e MUELLER, B (2003), Partidos Fracos na Arena Eleitoral e Partidos Fortes na Arena Legislativa: A Conexão Eleitoral no Brasil. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 46, no 4, 2003, pp. 735 a 771 RUBIN, Irene S. The Politics of Public Budgeting: getiing and spending, borrowing and balancing. 5th ed. Rubin, Irene S. CQ Press 2006. SCOTT, James (1998), Seeing Like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed (New Haven: Yale University Press: 0300070160) Schlesinger, A. M., Jr. (1986). The cycles of American history. Boston: Houghton Mifflin. WILDAVSKY, A. Budgeting as cultural phenomenon. In: RABIN, J. (Ed) Handbook of Public Budgeting. Ed. Marcel Dekker, New York, 1992. p. 51-56. WILDAVSKY, Aaron (1961). 'Political implications of budgetary reform,' Public Administration Review 21 (4): 183-190. WILDAVSKY, Aaron (1964). The Politics of the Budgetary Process. Boston: Little Brown. WILDAVSKY, Aaron and CAIDEN, Naomi. The New Politics of the Budgetary Process 3rd ed. (New York: Longman., 1997). i Reformas orçamentárias têm ocorrido na maior parte dos países democráticos. Apenas a título de exemplo, ao redor da década de 1990, houve importantes reformas nos Estados Unidos, no Reino Unido, na França, na Nova Zelândia, na Austrália e no Japão. Mais recentemente, países em desenvolvimento como o Chile, a Colômbia, a Turquia e o Brasil também experimentaram uma onda de reformas desta natureza. ii Orçamento incremental, orçamento por desempenho, orçamento-programa, PPBS, orçamento base-zero e orçamento por resultados são alguns dos rótulos sob os quais se abrigam proposições teóricas e reformas orçamentárias. iii Vide MTO-02 (1999, p. 11). iv Cavalcante é uma honrosa exceção a esta visão monocular. Ao analisar o impacto da adoção do modelo de orçamento por resultados em programas sociais do governo federal, o autor o faz a partir de um quadro referencial mais amplo, o qual inclui as lentes neo-institucionalistas, o modelo garbage-can e abordagens relacionadas à formação das coalizões. v Esses três modelos conceituais foram desenvolvidos por Allison em seu mais influente trabalho, o artigo Conceptual Models and the Cuban Missils Crisis, de 1969. O texto original, que deu origem ao livro The Essence of Decison em 1971, foi substancialmente aperfeiçoado na edição que o revisou, em 1999, a qual contou com o importante auxílio do Professor Philip Zelikow, que se tornou co-autor da obra. vi Veja-se, por exemplo, Bendor & Hammond em Rethinking Allison’s Models, 1992. vii Para aprimorarem a obra, Allison e Zelikow (1999) serviram-se dos avanços teóricos e conceituais promovidos nas áreas de Ciência Política, Economia, Sociologia, Psicologia Social, Teoria Organizacional, Análise da Decisão e Estudos de Assuntos Internacionais, durante os trinta anos que separam o original de sua revisão. Em boa medida, as três lentes conceituais oferecidas são capazes de propiciar conclusões mais realistas e fiéis, em comparação à perspectiva monotônica, especialmente quando se considera a complexidade do contexto que se pretende analisar. Na pior das hipóteses, asseguram novas para o debate deste tema. viii Ainda por meio de um exercício analítico bastante limitado, inclusive por seu número de páginas. ix Explicada em boa medida pelas reiteradas crises econômicas que acometeram muitos dos países emergentes a parir de meados dos anos de 1990 (por exemplo, Rússia, México, tigres asiáticos e, inclusive Brasil). x Apesar de alguma similaridade, o conceito de “programa orçamentário” não deve ser confundido com a acepção dada ao termo “programa” no Modelo II de Allison. xi Neste contexto, o resultado de um programa deve ser entendido como a efetividade no alcance do objetivo proposto, ou seja, a transformação ou mudança em uma realidade concreta a qual o programa se propôs modificar (Brasil, 2008). xii Os procedimentos operacionais padronizados constituem as rotinas que são utilizadas para lidar com situações ordinárias. xiii Programa é um cluster complexo de POPs. xiv Bendor & Hammond criticam uma das suposições de Allison neste modelo II – de que as organizações, assim como os indivíduos, tendem a processar informações decisórias de modo serial. Os autores sugerem que a combinação de talento, divisão do trabalho e especialização promovem um aumento dramático da capacidade de processamento.